'Tenho onde cair morta': por que jovens estão pagando plano funerário
Eles são jovens e já pagam um plano funerário. Conversam com a família sobre escolhas relacionadas à morte —se querem ser cremados, enterrados e até mesmo se são doadores de órgãos.
Aliás, tenho um casal de amigos que um deles já deixou esclarecido o tipo de cerimônia que prefere: sem choro e com música. Eles conversam normalmente sobre o tema, sem tabu, e até informaram um ao outro onde guardam as papeladas e senhas caso, um dia, aconteça alguma coisa.
Isso pode parecer mórbido para alguns, eu sei, mas, na verdade, é só uma questão prática, de organização, que, muitas vezes, envolve desde fatores culturais até socioeconômicos. Até porque morrer em São Paulo, por exemplo, ficou mais caro e passa dos R$ 1 mil.
"Tenho onde cair morta"
Quando tinha 23 anos, Nana Silva começou a pensar sobre o plano funerário, principalmente depois que a tia dela morreu. "Foi aquela correria com dinheiro para enterrá-la", conta.
Moradora da periferia de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, ela disse que, na época, não tinha grandes expectativas para a vida. Mas o que sabia desde sempre é que não queria deixar nenhum trabalho para a família caso algo acontecesse.
Na época que comecei o plano funerário tinha pensado em apenas para mim com aquele pensamento: 'Não vou dar trabalho para os outros'. Tinha aquela sensação de: 'E se eu morrer amanhã?'. Minha família não teria dinheiro pra me enterrar.
Na época da pandemia, Nana postou no Twitter falando do plano funerário, sobre suas preocupações, e diversos usuários criticaram a postura dela.
"Uma galera caiu ali me julgando com frases tipo 'tem que fazer algo em vida para os seus familiares'", disse. Mas Nana respondeu: "Tenho onde cair morta, no Brasil".
Hoje, aos 29 anos e morando em Dublin, na Irlanda, a engenheira de qualidade de software repassou o plano funerário para a mãe dela, que continua vivendo no Brasil. "Durante a pandemia, dei ainda mais valor para isso", conta.
"Morte não é só coisa de velho"
Discutir sobre essas questões, quando ainda é jovem, não é mórbido, nem patológico, segundo a professora e psicóloga Maria Júlia Kovács, membro-fundador do LEM (Laboratório de Estudos sobre a Morte) do Ipusp (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo).
Acho que é uma forma que os jovens têm de pensar e se de organizar em relação à vida e também à morte (...) Vemos casos de mortes por acidentes e tragédias, então é possível morrer em qualquer idade, basta estar vivo. A morte faz parte da vida dos jovens também. Não é só coisa de velho. Maria Júlia Kovács, psicóloga
Para Kovács, a pandemia trouxe, principalmente no auge dela, muitas questões sobre a morte. Diversas famílias tiveram de pensar nisso —e lidar com os gastos envolvidos— de um dia para o outro.
Morrer custa caro, então ter esse planejamento é realmente interessante porque a pessoa pode ir se organizando, para você mesma e também para as pessoas que vão ter que tomar providências em relação à sua vida. É uma discussão muito interessante. Maria Júlia Kovács, psicóloga
Para ela, só é preciso tomar cuidado quando essa conversa não segue o caminho oposto: da ideação suicida. "Na maioria dos casos, não é isso, é mais uma forma de organização e planejamento mesmo", diz.
"Muitos julgam e acham mórbido"
Suzely Alves, 36, paga R$ 59 mensalmente em um plano funerário que inclui urna, flores, decorações e lanches durante o velório. O pacote incluiu os pais dela, que têm quase 60 anos.
Ano passado, resolvi ir atrás e fiz um plano para meus pais e eu. Vi muita gente fazendo vaquinha durante a pandemia ou pedindo pix para custear os velórios. Não quero que meus parentes passem por isso.
Além disso, Suzely é fisioterapeuta em Palmas, no Tocantins, e explica que está acostumada a conviver com pessoas doentes. A morte faz parte da rotina dela, não é um tabu.
O fato de ser evangélica também contribui para ver a morte como algo natural. Minhas bisavós sempre tiveram plano funerário porque nunca gostaram de dar trabalho e depender dos outros, então cresci vendo isso como algo normal e benéfico. Quando elas faleceram utilizamos os planos delas.
Organizada, a fisioterapeuta afirma que não gosta de depender dos outros e nem de ter dívidas. Ela só quer mais tranquilidade e não ter que pensar nisso em um momento que costuma ser de dor e luto.
Imagine ainda ter a preocupação em conseguir dinheiro para custear um velório? Muitos julgam e acham um absurdo, dizem que essa preocupação é de quem fica vivo. Muitos amigos não gostam e falava que é mórbido e que pensar nisso atrai a morte.
Sobre vontades, tudo é dito entre a família. "Queremos ser velados na Igreja, com culto fúnebre e só depois o enterro", diz. "Minha mãe já até escolheu as músicas dela", conta, rindo.
Eu não fiz minhas recomendações ainda. Mas quem convive comigo sabe que sou alegre, divertida e já avisei que não quero muita tristeza nem demora. Podem ser práticos.
"Sem tabu com a morte. Fiz meu plano aos 19 anos"
"Minha bisavó era lavadeira e tinha uma filosofia de vida: não atrapalhar ninguém quando morrer", explica Rafael Silva de Souza, 26. Desde os 19 anos, ele paga o plano funerário.
Para ele, a questão é simples: "Quero partir em paz e não deixar nenhuma tribulação com ninguém." O editor literário de Imperatriz, no Maranhão, acha natural esse tipo de escolha.
Na minha família nunca tivemos tabu. Temos consciência que a morte é a consequência de estar vivo. Todo mundo é segurado, seja no plano familiar ou individual.
Rafael explica que não há estranheza entre eles. "Dá R$ 55 ao mês e você paga pouco a pouco ao longo das prestações. As pessoas têm muito medo de morrer, mas é preciso ter isso tudo pronto", reforça.
"Aqui em Imperatriz, um processo todo, mais 'bacana', sai em torno de uns R$ 6 mil se você não faz o plano antes. Se ninguém tem esse dinheiro guardado, como é que faz?", diz Rafael.
Sobre desejos, o editor literário conta que é doador de órgão: "Se ocorrer algo, já tenho tudo organizado mesmo, até uma poupança para ração do meu cachorro eu já fiz", diz, rindo.
Entre minha família, entendemos a vida como um ciclo. Só queremos facilitar nossa passagem, sabe?
Planos para todas as faixas etárias
Lourival Panhozzi, presidente da Abredif (Associação Brasileira de Empresas e Diretores do Setor Funerário), explica que existem planos funerários para todas as faixas etárias, inclusive a partir dos 20 anos, mas quem mais procura está na faixa de 45 a 65 anos.
Acho interessante o foco. Tentar entender a mente e as motivações deste grupo porque, de regra, uma pessoa de 25 anos não pensa nos preparativos para uma cerimônia funerária.
No entanto, para Panhozzi, o sentimento de vida, morte, eternidade faz bem. "Nos faz querer ter uma boa morte e para tê-la é preciso ter um bom viver. Nada errado em pensar na morte se você não a deseja, mas a aceita como ciclo da eternidade", fala.