'Decidi doar meu corpo à universidade para estudarem doenças quando morrer'
A comerciante gaúcha Luciane Silveira, de 59 anos, recebeu um pedido inusitado de sua tia: a mulher queria doar seu corpo para pesquisas em universidade após a morte. Ao buscar informações, Luciane também se sensibilizou e decidiu fazer o mesmo. Tornou-se doadora para contribuir com a ciência.
Luciane procurou universidades onde mora, no Rio Grande do Sul, e viu que o procedimento não era tão difícil como acreditava ser. Ao mesmo tempo em que buscava informações, começou a mudar sua visão sobre funerais e sobre a morte.
Ela já havia trabalhado como voluntária em um hospital, o que apurou seu olhar para o cuidado com as pessoas. "Achei tão importante como os médicos aprendem, com livros, com tudo... mas nada é tão importante quanto aprender com o corpo de uma pessoa."
Para iniciar o processo, ela entrou em contato com duas faculdades gaúchas e registrou o pedido em uma delas. Luciane, então, recebeu as documentações necessárias para formalizar o interesse na doação, que é registrada em cartório.
"Você recebe uma carteirinha de doador e escolhe se quer ser velado ou não." Luciane não quer velório: seus familiares podem fazer um pequeno encontro em casa, mas nada grande nem ritualístico, diz ela.
Acho desnecessário esse sofrimento. Melhor do que gastar um valor para o funeral é gastar em vida. E depois doar seu corpo para que médicos estudem doenças.
Luciane Silveira
Criada no espiritismo, ela diz ter uma relação mais tranquila com a ideia de morte. "Não tenho esse apego ao corpo material. É só minha alma que vai. Meu corpo não é necessário."
Depois que tomou a decisão, ela conversou com familiares, que ficaram um pouco surpresos com o pedido. "Meu filho estranhou um pouco, mas eu brinco que se eles não fizerem minha vontade, volto para puxar o pé deles."
Com outras pessoas, quando menciona que quer doar seu corpo para ciência, ainda recebe uma reação de estranhamento e respostas negativas. Ela chegou a ouvir que a atitude deveria ser deixada para os indigentes.
A pior coisa que já ouvi é que era para deixar isso para os 'mendigos'. Elas veem como uma coisa feia, para quem não tem família. Mas acho que a minha família vai se orgulhar de mim. Vejo como algo bem importante.
Luciane Silveira
Luciane também diz que há questões religiosas e pensamentos antigos, que impedem muitas pessoas de entenderem essa contribuição para ciência.
Ela espera ajudar outras pessoas após a morte —com estudos científicos, descobertas e curas de doenças.
"Quero que meu corpo chegue lá [na universidade] e seja aproveitado, que seja estudado e não descartado. Se isso ocorrer, pelo menos vou ter feito algo."
Como funciona a doação?
O primeiro passo é procurar a universidade para formalizar o interesse na doação. O processo pode variar em cada instituição. Em geral, a pessoa interessada em ser doadora assina um termo de doação, junto com testemunhas, e reconhece a firma (assinatura) no cartório. O processo também pode ser consultado no site da Sociedade Brasileira de Anatomia. Além disso, é importante avisar os familiares sobre essa vontade.
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Quero receberApós a morte, a universidade vai conferir documentos. A documentação exigida para o recebimento do corpo pela universidade pode variar em cada unidade, mas, geralmente, são pedidos a declaração de doação em vida, declaração de óbito e documento do departamento de anatomia manifestando o interesse em receber o cadáver.
Deslocamento e velório. Em alguns casos, o familiar ou responsável providencia o traslado do corpo até o departamento de anatomia da universidade. As cerimônias, como velório, podem ser feitas.
Há restrições? Caso o corpo tenha sofrido morte violenta, não poderá ser usado para estudo e pesquisa —deverá ser submetido a necropsia. Segundo a USP, corpos de pessoas que tiveram doenças infectocontagiosas podem não ser aceitos. Além disso, é preciso que a família aceite a doação do corpo à universidade no momento da morte —se for constatado que a doação dificultará o luto dos familiares, o processo não é feito.
É diferente da doação de órgãos. Todo o corpo é doado e quem vai recebê-lo é a universidade —e não uma pessoa. Após a doação, o corpo passa por técnicas de conservação para ser utilizado no ensino e na pesquisa (o uso pode durar anos). Os profissionais são treinados para trabalhar de forma ética e respeitosa com o corpo. Os dados a respeito do doador são sigilosos e não há qualquer contrapartida financeira para a família após a doação.
Por que é importante doar?
O procedimento contribui para melhorar a formação dos profissionais de saúde porque possibilita o estudo das variações anatômicas, explica Elizabeth Neves de Melo, professora titular de Anatomia da UFPE (Universidade Federal do Pernambuco) e curadora do acervo de cadáveres do departamento de anatomia da mesma instituição. O corpo pode ser usado na formação de profissionais de diferentes especialidades, como médicos, enfermeiros e fisioterapeutas.
Menos comum. Diferentemente da doação de órgãos, a doação de corpos é menos popular no Brasil —por isso, algumas universidades relatam número de cadáveres inferior ao ideal para as aulas e pesquisas.
Há diferença no aprendizado em bonecos e em corpos humanos. "O modelo comercial (boneco) é um utensílio aditivo ao aprendizado. Muitas características morfológicas são praticamente impossíveis de serem apresentadas no modelo", diz Melo, que também é coordenadora do programa de extensão Doação de Corpos da UFPE - Corpos que Ensinam. A resistência da pele ao bisturi ou a textura de um órgão são dificilmente simuladas por modelos sintéticos.
Observamos que a sociedade respondeu muito bem nas poucas vezes em que comunicamos a necessidade de cadáveres para a formação dos profissionais de saúde. O compartilhamento dessa falta de cadáveres com a sociedade resultou em pessoas que se sensibilizaram e se sentiram preparadas para doar seus corpos para serem utilizados após a morte, de forma visivelmente altruísta.
Elizabeth Neves de Melo
Ainda há muito preconceito no processo e nem todas as pessoas entendem os benefícios da doação. "O preconceito que levou à pouca divulgação da utilização de cadáveres para estudo está principalmente relacionado com a religiosidade. Até um tempo atrás a igreja condenava a utilização de corpos mortos para estudo." No Brasil, uma lei regulamenta as doações, e as universidades têm processos específicos —na USP, também há programas voltados para a doação de corpos.
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