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Mãe espera indenização há 11 anos por ver filha nua em revista em presídio

Criança é submetida ao scanner corporal na penitenciária de Getulina, em São Paulo Imagem: Divulgação / Defensoria Pública de São Paulo

Do UOL, em São Paulo

30/03/2024 04h00

No canto da sala de revista, Diana*, 7, esperava a mãe terminar de se vestir para juntas visitarem o pai em uma unidade prisional quando uma das agentes penitenciárias exigiu que a menina tirasse a roupa e abaixasse a calcinha. "Ela ficou nervosa e as agentes falaram 'manda ela parar de chorar'", diz Juliana.

O caso ocorreu em outubro de 2013, na Penitenciária de Pacaembu, no interior de São Paulo, e é um dos poucos em que um familiar de pessoa privada de liberdade move uma ação contra o Estado — e venceu. Até hoje, porém, Juliana não recebeu o valor a que tem direito. Onze anos após a violação, a jovem faz acompanhamento psicológico para amenizar o trauma.

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A SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) afirmou que o caso está em segredo de Justiça — por isso não foi informado o motivo da demora no pagamento. Hoje, destaca a pasta, a revista é feita com scanners corporais e sem contato físico.

O UOL teve acesso a outras 11 denúncias recebidas pela Defensoria Pública de São Paulo — todas no ano passado — envolvendo violações de direitos de crianças que visitam familiares em unidades prisionais no estado. Os casos vão desde o impedimento da entrada nas unidades com alimentos até queimaduras em scanners corporais.

Bebês têm fraldas trocadas em locais considerados impróprios e sem higiene em prisões de SP Imagem: Divulgação Defensoria Pública de São Paulo

As denúncias chegam ao órgão de diferentes formas e têm como ponto comum a não identificação da maior parte dos denunciantes. "Eles [denunciantes] têm medo de perder os direitos e de o parente preso sofrer represálias", diz Camila Galvão Tourinho, defensora e coordenadora auxiliar do Núcleo de Situação de Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo.

A ausência de uma ouvidoria independente da SAP acentua a insegurança dos familiares na hora de denunciar, afirmam advogados que acompanham os casos. "Falta uma ouvidoria nos moldes da polícia, com sedes em diferentes regiões", diz Ariel de Castro Alves, ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

A SAP informou, por meio de nota, que "todas as denúncias apresentadas são rigorosamente apuradas e, se identificadas irregularidades, os servidores são responsabilizados".

Criança sofreu queimaduras ao passar por scanner em unidade prisional de SP Imagem: Divulgação / Defensoria Pública de São Paulo

Violações naturalizadas

As violações envolvendo crianças ocorrem desde as filas para a inspeção até o fim das visitas — e a situação piora com o aumento recorde de temperatura, relata a Defensoria Pública.

As crianças ficam angustiadas, as unidades estão localizadas em regiões muito quentes, levando a um desconforto generalizado.
Camila Galvão Tourinho, Defensoria Pública de São Paulo

Um dos casos que chegou à Defensoria diz respeito a uma criança que teve o braço queimado no scanner da Penitenciária Álvaro de Carvalho, em novembro do ano passado. "Enquanto eu estava passando, ele [filho] ficou perto da minha bebê de três meses, ajudando e me esperando, e acabou colocando o braço na esteira do scanner", diz a mãe do menino na denúncia.

Para a Defensoria, o governo deveria garantir condições de segurança às crianças nas visitas. A secretaria disse que "a unidade atendeu prontamente a criança que se acidentou e ofereceu todo o suporte para a mãe".

Mulheres e crianças enfrentam violações de direitos desde a fila para visitas em prisões Imagem: Divulgação / Defensoria Pública de São Paulo

Na unidade de Getulina, bebês são colocados em bacias de plástico para atravessar o scanner. "É difícil esperar que um bebê se mantenha estático", observa a defensora. A advogada e integrante da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB de São Paulo, Vivian Marconi da Silva, conta que as mães são obrigadas a trocar a fralda das crianças na presença dos agentes.

Outras denúncias a que a reportagem teve acesso incluem famílias impedidas de entrar com crianças de colo na Penitenciária de Assis, reclamações de funcionários sobre choro de crianças no CDP Osasco 1 e impedimento de crianças entrarem com fruta e leite nas unidades de Pinheiros e na Feminina da capital.

Essas violações são naturalizadas. É uma política de Estado.
Camila Galvão Tourinho, Defensoria Pública de São Paulo

Bebê passa por scanner corporal em revista na penitenciária de Getulina Imagem: Defensoria Pública de São Paulo

Crianças sem espaços adequados e impedidas de usar o banheiro

Há casos que não chegam a ser registrados pelos órgãos oficiais, mas são relatados por quem frequenta as unidades.

Na penitenciária de Presidente Venceslau 2, parentes afirmam que a ausência de espaços adequados faz com que crianças visitem familiares dentro das celas. "O fato de a criança ficar trancada na cela faz com que muitos familiares deixem de levá-las às visitas, prejudicando os vínculos familiares", diz a defensora.

A SAP confirmou que "aos finais de semana, as visitas normalmente ocorrem em pátios e os menores podem acessar celas de pavilhões, sob vigilância de servidores".

A convivência entre pais e filhos é um direito de pessoas privadas de liberdade. "O convívio é de extrema importância para o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes", diz Marta Eliane de Lima, conselheira secretária do Conselho de Psicologia de São Paulo. Ela pondera, entretanto, que as celas deveriam apresentar condições diferentes das observadas nas prisões do país.

Em Martinópolis, uma menina de 5 anos esperava com a mãe o momento de se encontrar com o pai quando foi impedida de usar o banheiro. "Ela não conseguiu se segurar e entrou para a visita com a calcinha suja. A mãe teve que dar banho nela com água gelada", diz a advogada Vivian. Depois disso, a menina não quis mais ir às visitas.

A pasta respondeu que a penitenciária "dispõe de banheiros na portaria da unidade, de livre acesso a adultos e suas crianças".

Berço posicionado ao lado de scanner corporal em presídio de São Paulo Imagem: Divulgação Defensoria Pública de São Paulo

Outros cuidados

A defensora Camila Tourinho afirma que não há orientações específicas para visitantes que podem estar grávidas.

A Defensoria Pública de São Paulo recebeu denúncias sobre atendimento a gestantes — duas são da dona de casa Silvia Santos Tomé, 47, que visitou o companheiro no Centro de Detenção Provisória Pacaembu 2. "Perdi meu nenê lá", escreveu ao órgão. "Levava minha carteirinha de gestação, mas mesmo assim passava pelo scanner com a radiação."

A secretaria alegou que a radiação decorrente do equipamento "não é prejudicial à saúde" e que grávidas com "indicação médica específica" "poderão ser submetidas a outros métodos de revista, como o portal detector de metais".

O físico Salvador Mangini Filho, supervisor de proteção radiológica industrial, diz que esses equipamentos possuem dose baixa de radiação. "São doses próximas de zero, não há evidências na literatura científica de efeitos biológicos, como indução de aborto ou doenças", afirma.

Silvia Santos Tomé frequentava a unidade grávida em fevereiro. No mês seguinte, perdeu o bebê Imagem: Arquivo pessoal

O que diz a lei

A Lei de Execução Penal assegura às pessoas privadas de liberdade o direito à visita de familiares para a manutenção dos vínculos entre o preso e a família. Segundo Alves, especialista em direitos da infância e juventude, esses casos representam violações à integridade física e psicológica das crianças. "Crianças e mães acabam penalizadas pelo Estado."

Camila Tourinho defende que as unidades sejam obrigadas a garantir estrutura física para receber crianças e adolescentes e que os agentes penitenciários saibam operar os equipamentos. Para Alves, familiares com crianças devem ter prioridade nos atendimentos.

Diferentemente do que apontam as denúncias, a SAP afirmou que as unidades respeitam o atendimento preferencial para crianças de colo e filhos pequenos. A secretaria disse ainda que os policiais penais que operam scanners passam por treinamentos e são capacitados para a atividade conforme as orientações da Comissão Nacional de Energia Nuclear do Ministério da Ciência e Tecnologia.

Submeter crianças a opressões, violências, constrangimentos e humilhações viola cinco artigos do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e um artigo da Constituição Federal.

Duas leis incorporadas ao estatuto em 2014 e 2017 também protegem as crianças e adolescentes nessas situações. A primeira permitiu a essa parcela da população participar das visitas mesmo sem autorização judicial. A segunda tem o objetivo de evitar que crianças sejam revitimizadas em situações de violência.

A lei é um avanço porque antes alguns juízes tentavam impedir as visitas, mas não foi tratado de como os presídios deveriam se adequar.
Ariel de Castro Alves, ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

As crianças ou adolescentes, representados por seus pais, mães ou representantes legais, podem mover ações de indenização por danos morais e materiais contra o estado. Segundo o advogado, os responsáveis podem acionar o Ministério Público e as defensorias públicas, para as ações civis públicas, e a polícia para gerar inquéritos contra os agentes penitenciários pelos crimes.

Em quantidade limitada, fraldas são descartadas durante inspeções para visitas Imagem: Divulgação Defensoria Pública de São Paulo

*O nome foi trocado para proteger a criança.

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