MPF pede reparação e anistia a João Cândido, líder da Revolta da Chibata
O MPF (Ministério Público Federal) afirmou que o marinheiro João Cândido Felisberto, conhecido como Almirante Negro e um dos líderes da Revolta da Chibata, em 1910, é alvo de uma "perseguição sem fim". O parecer foi enviado ao MDHC (Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania) no último dia 19.
O documento faz parte de um inquérito civil aberto pelo órgão com o objetivo de estabelecer medidas de reparação e revalorização da memória do militar, morto em 1969.
O que aconteceu
Parecer solicita a criação de museus e a classificação de Cândido como anistiado político. A segunda medida daria ao marinheiro direito às promoções que teria recebido caso não tivesse sido expulso da Marinha em 1912 e permitiria que seus descendentes recebessem uma pensão. Um dos filhos de Cândido, Adalberto Nascimento Cândido, está vivo, com 85 anos.
Após provocação do MPF, a Comissão de Anistia disse no último dia 25 que instaurou procedimento. O órgão do MDHC é a instância do governo responsável por analisar pedidos de anistia política. O ministério informou que não há prazo para julgar o requerimento.
Documento também recomenda inclusão do nome de Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. Essa medida depende de aprovação do Congresso Nacional, que deve debater o tema em uma audiência no próximo dia 24. Baseado em Brasília, o livro homenageia Zumbi, Tiradentes e outras figuras de destaque na história do Brasil.
Procurada, a Marinha não se manifestou. Em outras ocasiões, membros da Força já se opuseram a homenagens a Cândido. Eles afirmam que a revolta liderada pelo marinheiro colocou a cidade do Rio em perigo e envolveu quebra de hierarquia. Cândido se rebelou contra castigos corporais nos navios, em 1910.
Resistência da Marinha limitou reconhecimento de Cândido por parte do governo federal. Entre 1959 e 1969, o marinheiro recebeu uma pensão do governo do estado do Rio Grande do Sul. Mas a lei federal que o inocentou em definitivo, além de outros participantes da revolta, só saiu em 2008 e não previu nenhuma outra forma de reparação aos envolvidos.
Tema da reparação voltou às manchetes nos últimos dias. A situação se deu após o governo Lula decidir não organizar eventos oficiais relativos aos 60 anos do Golpe de 1964. Na última quarta (3), Clarice Herzog foi declarada anistiada política. Ela é viúva de Vladimir Herzog, jornalista morto pela ditadura em 1975.
MPF abriu inquérito civil sobre Cândido no ano passado. A ação é tocada pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Estado do Rio.
João Cândido teve seus direitos violados e foi expulso da Marinha. A anistia não valeu, ele foi traído, e, na sequência, o Estado brasileiro não parou de persegui-lo. A gente sustenta isso nesses pareceres, que há uma perseguição de sua memória. A resistência da Marinha à consagração dele como herói nacional é só mais uma prova disso
Julio José Araujo Junior, procurador da República e autor dos pareceres do MPF
Como foi a revolta
Em 1904, o governo brasileiro começou a negociar o reaparelhamento da Marinha. À época, novos navios foram encomendados na Inglaterra e marinheiros foram enviados à Europa para aprender a operá-los. Nesse período, cerca de 90% dos militares de baixa patente da Marinha eram negros —enquanto todos os oficiais da força eram brancos.
Contato de brasileiros com europeus despertou questionamento sobre castigos corporais. Previstas pelas regras da Marinha, as punições para marinheiros incluíam chibatadas e se somavam às más condições de trabalho. Essas circunstâncias fizeram com que eles começassem a se organizar para fazer reivindicações.
Marinheiros tentaram negociar melhorias durante dois anos. Segundo Álvaro Nascimento, professor titular de história do Brasil na UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e autor do livro "João Cândido: O Mestre-Sala dos Mares", eles enviaram suas propostas a políticos entre 1909 e 1910. Mas não tiveram sucesso e começaram os preparativos da revolta.
A Revolta da Chibata começou em 22 de novembro de 1910. O motim envolveu 2.000 marinheiros e, logo no primeiro dia, seis militares em postos de comando foram mortos. Além de Cândido, André Avelino, Francisco Dias Martins e Manoel Gregório lideraram a tomada dos navios Bahia, Deodoro, Minas Gerais e São Paulo.
Fim dos castigos corporais não era a única meta. Em uma carta enviada ao presidente Hermes da Fonseca no segundo dia de motim, eles pediram salários maiores, expulsão de oficiais que exageravam nas punições e suporte aos colegas que sofriam de alcoolismo e outros problemas decorrentes das más condições de trabalho.
Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira (...) Vinte anos de República ainda não foram o bastante para nos tratarem como cidadãos fardados em defesa da pátria
Trecho da carta enviada pelos marinheiros ao presidente Hermes da Fonseca, em 22 de novembro de 1910
Governo federal aceitou acabar com os castigos, mas traiu os marinheiros. Dois dias após o fim da revolta, um decreto permitiu que revoltosos fossem expulsos por indisciplina. Nos meses seguintes, Cândido e outros líderes foram presos —sendo absolvidos pela Justiça em 1912, mas expulsos da Marinha.
O fato de um homem preto ter se notabilizado como líder de uma revolta que envolveu a quebra da hierarquia dificulta até hoje a aceitação da figura do João Cândido pelos oficiais mais antigos. Mas, para mim, essa resistência em relação a ele é contraproducente, casmurrenta, pouco simpática. É algo ruim, inclusive, para a imagem pública da Marinha, já que a luta dele era contra castigos corporais que sequer seguem ocorrendo de forma institucionalizada hoje
Álvaro Nascimento, professor titular de história do Brasil na UFRRJ e autor do livro "João Cândido: O Mestre-Sala dos Mares"
Perseguição envolveu surra e censura
Parecer aponta racismo e perseguição política contra Cândido por mais de 50 anos. Após ser expulso da Marinha, o marinheiro teve dificuldades em conseguir trabalho, já que oficiais ameaçavam seus empregadores. Além disso, as intimidações àqueles que tentaram contar sua história seguiram mesmo após sua morte, em 1969.
Jornalista foi sequestrado e agredido por contar história da revolta em 1934. Apparício Torelly, o Barão de Itararé, foi retirado de seu carro por oficiais da Marinha, que exigiram que ele parasse de publicar um folhetim sobre o episódio em seu jornal. Ao se negar a fazê-lo, o repórter foi espancado e deixado nu no Rio.
Autor de livro sobre Cândido teve obra censurada e direitos políticos cassados pela ditadura. Em 1958, Edmar Morel lançou "A Revolta da Chibata", que foi recolhido das livrarias seis anos depois, quando os militares chegaram ao poder.
Canção e desfile de carnaval sobre o tema também foram alvos de censura. Lançada em 1973, a música "Mestre-Sala dos Mares", de Aldir Blanc e João Bosco, sofreu mudanças por causa do "conteúdo esdrúxulo" e das menções à negritude. Em 1984, a escola de samba União da Ilha do Governador teve de submeter detalhes do enredo "Um herói, uma canção, um enredo" à análise dos censores.
Para o MPF, os episódios mostram que os militares nunca deixaram de monitorar a memória de Cândido.
A história da Revolta da Chibata e dos feitos de Cândido e seu colegas de trabalho nos ensina sobre agência negra, consciência coletiva, empatia e solidariedade entre trabalhadores e sobre ideias de cidadania e direitos que precisamos desenvolver e consolidar em nossa sociedade. O episódio da Chibata nos ensina a vislumbrar uma sociedade melhor
Parecer do Ministério Público Federal sobre o caso de João Cândido