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Repórter do UOL no RS: 'Faltam água e alimentos, e comer requer improviso'

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o UOL, em Porto Alegre

09/05/2024 20h04

Conseguir me alimentar no Rio Grande do Sul não tem sido tarefa fácil. Muitos restaurantes estão fechados, e os abertos não têm água ou as opções são reduzidas. Também há uma questão particular da cobertura de uma tragédia: não há muito tempo para parar. Fico a maior parte do tempo na rua e não foram poucas as vezes em que comi no carro.

Eu já antevia isso antes mesmo de sair de casa, em Balneário Camboriú (SC). No domingo (5), antes de pegar estrada, passei no mercado e comprei um fardo de água mineral de 500 ml, bananas e atum enlatado. Como sabia que seria corrido e não tinha hora para chegar em Porto Alegre, levei um pão com ovo e um pote de salada. Não duraram muito.

À noite, já em Capão da Canoa (RS), no litoral, abordei uma senhora que parava sua bicicleta perto de um mercado. Precisava comer e carregar o celular. Ela me mostrou o caminho de um shopping, mas disse que a praça de alimentação só tinha um café. Eu não sabia a que horas chegaria à capital gaúcha, então decidi ir com a barriga cheia.

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Ela me passou três nomes de restaurantes, mas ou estavam fechados ou já fechando. Mudei de ideia e parti para o mais prático, um lanche. "Vai ali no Bar do Anão. Eu não conheço, mas todo mundo vai", indicou. Pedi um cachorro-quente duplo. Estava faminto.

De casa, também trouxe quase meio quilo de whey, para misturar com água e tomar rapidamente. Improvisei um recipiente para misturar os ingredientes, cortando uma garrafa de água.

Restaurantes estão fechados ou com atendimento comprometido; opção é comida pronta de mercados Imagem: Hygino Vasconcellos/Colaboração para o UOL

Na manhã de terça-feira (7), já em Porto Alegre, tentei achar um lugar para tomar café da manhã enquanto procurava um hotel. Uma padaria no bairro Moinhos estava abarrotada de produtos secos, como pães e bolachas, mas sem café. Os banheiros estavam interditados, para meu azar, já que eu não havia conseguido tomar banho no dia anterior pela falta d'água. Eu queria pelo menos lavar o rosto e tirar as remelas.

Depois de conseguir me instalar em um hotel, eu circularia pela cidade até o começo da tarde, produzindo reportagens. Não demorou muito para eu encontrar um armazém, mas estava sem água, usando uma reserva de emergência só para limpar utensílios. A poucos metros dali, um homem e uma mulher treinavam crossfit. Quando os vi correndo na rua, completamente suados, pensei comigo: essa gente deve ter água em casa, só pode ser.

Mas eu tinha pressa e não consegui conversar com eles. Eu estava atrás de revendas de água —no centro, às 7h já havia filas nesses locais. No caminho, me chamou a atenção o supermercado Zaffari da Otto Niemayer, completamente lotado. Havia filas nos caixas e uma verdadeira corrida por água potável, em falta na cidade. Segui para outros mercados, menos movimentados, mas que já não tinham mais água para vender.

Passava das 14h e eu ainda não havia almoçado, já estava ficando zonzo e com dor de cabeça. Parei em um restaurante que servia marmitas e comi rapidamente o que tinha: salada de tomate e cenoura, arroz, dois ovos fritos e carne. Na saída, perguntei se havia água no local e a resposta foi um sonoro "não". Pensei comigo: "como eles lavaram os alimentos e cozinharam?". Mas me contentei em imaginar que havia algum galão de água.

À noite, consegui passar no mercado que fica perto do hotel para comprar comida pronta. Um pote de arroz cozido ou de feijão estava na casa dos R$ 3, dois ovos cozidos, cerca de R$ 2, e uma grande porção de salada de beterraba, R$ 7. Fiz uma pilha de potinhos e subi para o quarto.

Na quarta-feira (8), consegui fazer duas refeições no hotel antes de sair, porque precisava me sentar e escrever duas reportagens. Tomei o café da manhã e, no almoço, novamente comi refeição pronta do mercado.

Enquanto escrevia, fui tomando água das garrafas que havia enchido no dia anterior e colocado no frigobar. Um pouco antes de sair, fui encher uma garrafa de refrigerante vazia para levar para um amigo e reparei que a água passou a sair amarronzada. Parei na hora.

Onde há água nas torneiras, como no hotel em que estou, ela correm em tom amarronzado Imagem: Hygino Vasconcellos/Colaboração para o UOL

Voltou a chover quando eu saía do hotel, um verdadeiro pé d'água. Fui ao entroncamento da Terceira Perimetral com a avenida Benjamin Constant, na zona norte da capital, um percurso de pouco mais de meia hora. Ao chegar, demorei um pouco para entender a dinâmica. Havia carros estacionados por todos os lados antes de se chegar ao viaduto, policiais tentando organizar o trânsito e um vaivém de pessoas no asfalto.

Contornando o viaduto, avistei uma fileira de banheiros químicos, na calçada da Benjamin Constant. Ao me virar à esquerda, me deparei com uma multidão no meio do asfalto. Em uma tenda, os desabrigados recebiam comida e roupas secas, além de atendimento médico e psicológico.

9.mai.2024 - Entroncamento da Terceira Perimetral com a avenida Benjamin Constant virou ponto de acolhida dos resgatados Imagem: Hygino Vasconcellos/UOL

Cheguei no momento em que se tentava segurar um cachorro em fuga. "Pega, pega ele", disse uma pessoa. "Calma, ele tá assustado", gritava outra. Seguindo adiante, mais tendas. Passando o viaduto, lonas entre as paradas de ônibus ampliavam a área coberta. Estava escuro, mal dava para enxergar. Também havia ambulâncias e um ônibus, usado como suporte.

Mais alguns passos e cheguei à área alagada. As pessoas se aglomeravam à espera de notícias dos resgatados —familiares, amigos ou animais de estimação. Uma mulher aguardava angustiada, com uma caixa de transporte, pelos seus dois gatos. Quatro horas após nossa primeira conversa, a química industrial Veridiana Rodrigues recebeu a notícia de que o papel com o endereço de sua casa molhou, o que impossibilitou o resgate dos animais. A filha dela não escondeu a tristeza e abraçou o namorado, aos prantos.

9.mai.2024 - A química industrial Veridiana Rodrigues aguardava angustiada que seus dois gatos fossem resgatados Imagem: Hygino Vasconcellos/UOL

O trânsito de pessoas no local era intenso. Fitas de isolamento abriam caminho até as ambulâncias. Tentava-se, de algum jeito, organizar o caos. Volta e meia, ouviam-se gritos: "abre caminho!". No porto improvisado, chegavam pessoas das mais diferentes idades e muitos animais, vira-latas e de raça.

De frente para a área alagada, um espaço para a imprensa estava tomado por câmeras de televisão que transmitiam ao vivo. "Agora estão saindo duas adolescentes", narrava o colega repórter. Muitos curiosos observavam o trabalho da imprensa. Também havia pessoas tirando selfies.

Foi ali que escrevi, de pé, um relato do que acontecia neste ponto da cidade. Um pouco antes das 18h, fechei a reportagem e encaminhei para a editora. Participaria ainda do UOL News, em alguns minutos. Ao voltar para o carro, meu caminho inicial estava às escuras, o que me fez mudar a rota para não dar bobeira.

9.mai.2024 - Lona amplia a área coberta para atendimento dos resgatados Imagem: Hygino Vasconcellos/UOL

A rua tinha pouco movimento, propícia para um assalto. Ficava ali ou ia para outro lugar? Não dava tempo, e, se eu saísse, corria o risco de não ter internet —por aqui, o sinal oscila muito, comprometendo, por exemplo, o envio de vídeos. Eu ainda precisava finalizar meu trabalho do dia. Fui escrevendo, de olho a todo instante nos retrovisores. Por sorte, não aconteceu nada.

Parte do trajeto até o hotel estava às escuras —em alguns locais, principalmente nas avenidas maiores, havia viaturas policiais. Em ruas menores, mesmo iluminadas, os motoristas não paravam mais nos semáforos. Ocorriam saques nas zonas alagadas, então o que esperar de outros pontos da cidades?

Cheguei ao hotel perto das 22h, e o supermercado já estava fechado. Pedi comida do próprio hotel —uma fortuna, pensei, mas a fome batia. Pedi frango com legumes e batata baroa, por R$ 69, e corri para o banho. Enquanto estava lá, ouvi barulho de telefone e pensei ser do quarto ao lado —meu vizinho também é repórter.

Mas era o restaurante avisando que não tinha batata. Arroz? Também não. "Pode ser aipim?". Nem precisam imaginar o que eu respondi. Devorei a comida, enquanto acompanhava as notícias pela televisão.

Pensei comigo que pelo menos eu tinha acesso a comida e lugar para ficar, depois de voltar de uma verdadeira zona de guerra com uma multidão sem serviços básicos e fora de casa.

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