Repórter no RS: Em abrigo, gaúchos pensam no que restou de suas casas
Hygino Vasconcellos
Colaboração para o UOL, em Porto Alegre
10/05/2024 17h32Atualizada em 10/05/2024 17h32
Foi no abrigo do Cete (Centro Estadual de Treinamento Esportivo), em Porto Alegre, sentado em um dos degraus do ginásio, que conheci o aposentado Erandir Teixeira Martins. Com 84 anos, ele tinha apenas um ano de idade na grande enchente de 1941. O aposentado mora a poucos metros do abrigo, próximo ao Hospital Mãe de Deus —que fechou o setor de emergência, no último sábado (4), por conta dos alagamentos.
O idoso relata que resistiu a sair de casa. "Quando apagou a luz, eu pensei 'e agora'?", conta. A água já batia no colchão e alguns objetos boiavam quando ele foi retirado do local.
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Mal termino a conversa com o aposentado, volto a me sentar no degrau. Desta vez acompanhado da recicladora Cinara da Luz Salles, 43. Com o pensamento visivelmente em outro lugar, a mulher se mostrava preocupada com o que restou de sua casa, deixada para trás, a mais de dez quilômetros de distância do abrigo.
"Tem um pé de cinamomo em frente e tenho medo que ele tombe, já que a madeira vai estar podre com tantos dias debaixo d'água", conta a recicladora, que mora na Ocupação Cobal, zona norte de Porto Alegre.
A conversa com ela me levou a outra. Cinara contou que, em meio à fuga das famílias, o genro e o compadre decidiram ficar, inicialmente por medo de furtos. Porém, quando a água já estava no peito, o desempregado Michel Chamberlain Ponciano, 36, e o amigo, o servente de pedreiro Maick Soares Moreira, 26, passaram a usar um colchão inflável para resgatar os outros ilhados. Cerca de 20 pessoas saíram dali dessa maneira.
Foi no abrigo que fiz o que mais gosto na minha profissão: falar com pessoas. Mas, desta vez, não de forma apressada como nos últimos dias. Conversei com os desabrigados de maneira menos invasiva. Fazendo as perguntas aos poucos, sem atropelos.
A imprensa não tem acesso ao interior do ginásio, onde ficam os desabrigados. "Só pode fazer foto geral, sem zoom", alertou uma das assessoras da prefeitura. A intenção é dar o mínimo de privacidade a essas pessoas —principalmente às crianças— e, de alguma forma, protegê-las de exposição indevida.
Fora do abrigo, entretanto, a privacidade não tem sido respeitada por alguns jornalistas que, apesar das broncas dos voluntários, insistem em mostrar o rosto de menores, em áreas de resgate.
Enquanto conversava com os desabrigados, já começava a escurecer e a temperatura baixava rapidamente. Aceitei um café, que veio em boa hora. Eu estava de blusão e tinha uma jaqueta no carro, mas não valia a pena a viagem pois já estava terminando. Queria ainda conversar com a dona da porquinha Rose, que dividia espaço com as pessoas na área dos colchões —calma, gente, ela fica numa gaiola e tem semanas.
A recicladora Andressa Moraes Ramos, 25, conta que o filhote acorda sempre às 3h para mamar e não incomoda. "Trato ela como se fosse minha filha", diz. Os nove 'irmãos' da porquinha não tiveram a mesma sorte e morreram afogados. Já a mãe de Rose conseguiu ser resgatada, com as tetas cheias de leite, e levada para outro lugar.
Já era noite quando saí do Cete, que virou um ponto iluminado no meio da escuridão. O carro estava a uns 120 metros de distância, mas parte do caminho às escuras. Hesitei em seguir, mas liguei a câmera do celular e fui, rezando para não ser assaltado. Naquele momento, havia pessoas saindo ou entrando em carros e residências, mas mal dava para vê-los. No final, corri e liguei o carro rápido, arrancando dali.
No dia seguinte, ainda tinha algumas matérias para escrever e saí logo após o meio-dia. No caminho, passei perto do centro histórico, uma das regiões alagadas. É a minha parte favorita da capital "em dias normais" —sim, podem falar tudo que o quiseram, que é sujo e perigoso, mas há tanta coisa para se fazer na região. Foi ali que morei e trabalhei por anos. Mas hoje está tudo debaixo d'água —o Mercado Público, o café do cofre, a Casa de Cultura Mário Quintana, e outros pontos turísticos.
Foram cinco dias intensos e difíceis. Deixo hoje (10) a cobertura in loco das enchentes e volto para a minha casa em Santa Catarina. Passo o bastão para o repórter do UOL em Brasília, Felipe Pereira, que chegou a Porto Alegre em um voo de ajuda humanitária da FAB (Força Aérea Brasileira).
Deixo a cidade sabendo que ela vai demorar para voltar ao que era antes. Sinceramente, espero que tudo passe rápido.