Em busca de cliques, PMs narram mortes e agressões em videocasts
Canais que narram ações policiais em videocasts do YouTube acumulam milhares de visualizações explorando crimes e tratando a profissão policial com sensacionalismo.
O que aconteceu
Videocasts policiais narram violência explícita e incentivam discursos de ódio nas plataformas. Os canais, segundo apuração do UOL, descrevem homicídios, agressões e atentam contra diretrizes da internet.
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Recentemente, uma ação civil pública suspendeu vídeos de grandes canais policiais após constatar "incitação de crimes" e "discursos de ódio" em podcasts. Assinado pela juíza Geraldine Vidal, da 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro, o ofício determinou suspensão dos conteúdos e aplicou multa ao Google, responsável pelo YouTube, e aos proprietários dos canais.
Os canais contavam entre 300 mil e 2,5 milhões de inscritos no YouTube, e os vídeos narrando ações passavam de 8 milhões de visualizações, no conjunto. Contudo, não são apenas grandes canais que atentam contra as diretrizes determinadas pela Justiça.
Canais menores apelam para violência
"Quase matei minha mãe", "matou o PM e depois se matou", "esse matava no trabalho e de folga". Sem restrição de idade ou aviso prévio, videocasts e cortes se propagam no YouTube narrando ações policiais com violência explícita.
Além dos canais apontados pela Justiça, ao menos quatro outros reproduzem o mesmo tipo de conteúdo na plataforma. No levantamento da reportagem, com vídeos disponíveis no YouTube, apresentadores e policiais convidados são encorajados a contar como mataram suspeitos, como agem nos limites ou extrapolando as leis e porquê acreditam que policiais deveriam agir da mesma forma.
O Código de Ética e Disciplina da Polícia Militar veda que agentes comentem publicamente fatos ou situações que envolvam a entidade ou que possam comprometer a imagem da corporação. Além disso, a norma sugere que policiais evitem emitir informações sigilosas ou que comprometam a segurança pública.
A pessoa se identifica como o sargento fulano de tal, isso se torna uma parte importante daquilo que está dizendo e se torna uma validação daquilo que a pessoa está falando. E ela começa a falar sobre violência, sobre morte, incitar tal tipo de atitude. Passa uma mensagem equivocada para quem está assistindo de que esse é o padrão de comportamento das forças policiais e que esse deve ser o caminho a ser adotado.
Roberto Uchôa, policial e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Canais policiais somam milhões de visualizações
Canal expõe depoimentos sobre suicídio. No podcast "Fala Guerreiro", que se descreve como o canal para "admiradores das forças de segurança", com pouco mais de 100 mil inscritos, um agente conta como quase se matou após enfrentar uma situação adversa em uma favela do Rio de Janeiro.
"Na hora eu pensei: vou me dar um tiro na cabeça", diz a chamada e um trecho para o episódio. Assim como os outros canais citados na reportagem, o programa alega que todas as opiniões expressas pelos convidados são de responsabilidade própria.
O canal PodCastro citou um caso em que um agente do Bope matou um PM. Não é raro encontrar nos episódios disponíveis descrições de agentes sobre rixas entre profissionais das operações especiais e policiais militares de outras instâncias. O título do vídeo expõe a situação: "SD CORRÊA : A POLíCIA ARMOU PRO POLICIAL NA BAHIA". Eles não apresentam fatos que comprovam a situação.
O PodCastro é de posse de Nilson Castro, oficial reformado da polícia paulista. Ele já foi punido pela Corregedoria da Polícia Militar por depreciar a imagem da instituição em posicionamentos públicos. Ao receber a notícia da reclusão de dois dias, ele comentou que faria uma "live" de dentro da "cana" — o que é proibido.
Castro diz que cumpriu a medida disciplinar e ainda postou vídeos enquanto esteve recluso no batalhão. Mesmo após a punição, ele continuou com a mesma atuação na internet. Em seu canal, com mais de 180 mil inscritos, cortes com títulos sensacionalistas seguem sendo reproduzidos.
"Danilo Snider", parceiro de Castro em outro podcast, foi um dos punidos pela Justiça e condenado a suspender vídeos no dia 15 de junho. Mesmo com o ajuizamento do Poder Judiciário para cessar vídeos que rompam direitos humanos, as entrevistas que descrevem as ocorrências, regadas a palavras de baixo calão, acusações sem provas e narrações de mortes, seguem acontecendo.
Snider não quis se pronunciar sobre a ação civil pública que puniu seu podcast. No entanto, em cortes do seu canal, exemplos de vídeos com títulos "eu quase matei minha mãe" e "deixei ele tetraplégico" seguem rendendo monetização ao podcast de 1,6 milhão de inscritos. Ele também ganha dinheiro divulgando uma casa de aposta.
Podcast descreve policial de São Paulo que "matava no trabalho e fora dele". Em um episódio do canal "Operação Lótus", o convidado descreve um agente chamado "Vermelho", que, supostamente, acabou preso por "uma ocorrência com um vizinho vagabundo traficante", onde o homem acabou morto. O canal gera receita com visualizações, com propaganda de cursos e clubes de tiro e com vendas de uma loja. O canal argumentou que o vídeo em questão foi uma declaração isolada, e que orienta os convidados sobre declarações como essas.
Discursos homofóbicos, transfóbicos e de criminalização de favelas são comuns. Em breves relatos, os convidados dos diversos podcasts costumam falar sobre como entram em comunidades indiscriminadamente para confrontos em qualquer horário, falam de pessoas LGBT+ de forma pejorativa, atentam contra religiões e muito mais. "A ORDEM ERA ENTRAR NA FAVELA DE MANHÃ, DE TARDE E DE NOITE! - CB A. RAMOS", diz a chamada de um vídeo do canal "Fala Tropa", que ganha dinheiro divulgando curso para aprovação na PM do Rio de Janeiro.
Essa é uma preocupação, não é só incitação da violência, é você dizer que a violência é uma prática do Estado. Apesar que a gente sabe que há excessos, sabe que isso acontece, mas eu acho que isso tem que ser combatido e não ser divulgado como uma prática comum, uma prática correta e que é isso que tem.
Roberto Uchôa, policial e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Situações fictícias
"Montaram situações falsas", explica especialista. Para Uchôa, há uma glamourização da violência nos discursos policiais de quem vai em determinados podcasts. Segundo ele, muitos destes chegam até mentir sobre supostas operações.
Segundo o especialista, o problema não é dar voz aos policiais. Uchôa comenta que os agentes são livres para dar opiniões, desde que não ofereçam "prejuízos para a instituição e para a própria credibilidade do sistema de segurança pública".
Pessoas que tinham canais montaram situações falsas para passar uma imagem de proatividade, de que participavam da luta contra o crime, que bandido bom é bandido morto. Todo esse discurso e é um discurso que fragiliza a sociedade como um todo, porque incentiva o confronto e isso fragiliza no final o próprio policial. Não esse que está falando, mas o outro que realmente exerce seu trabalho e está na linha de frente, que muitas vezes não faz o que é falado, não comete as violências que são ditas, mas que por ser policial passa a ser apontado como alguém que comete essas práticas.
Roberto Uchôa, policial e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Outro lado
Nilson Castro, do canal PodCastro, disse que não tem nada a declarar. Danilo Snider, parceiro de Castro, foi procurado pela reportagem, mas não quis se pronunciar.
Após a publicação da reportagem, o canal "Operação Lótus" afirmou que tenta mostrar "o lado humano dos operadores da segurança pública, curiosidades e situações que eles passam". Durante o programa, na noite desta sexta-feira (21), os apresentadores argumentaram que a citação exposta na reportagem se deu em uma ocasião isolada. Segundo eles, a capa do vídeo, narrando a atuação de um agente, foi usada para chamar a atenção para o conteúdo. "A gente sempre orienta os convidados sobre isso", concluiu.
Os canais "Fala Guerreiro" e "Fala Tropa" foram contatados pela reportagem via email. Havendo manifestação, o texto será atualizado.
O Google disse que não se manifestará sobre os canais citados na decisão judicial.