'Prisão marca a alma': ele ficou 461 dias detido por crime que não cometeu
Rogério Pinheiro Leão foi condenado a mais de 15 anos de reclusão em regime fechado e passou 461 dias preso por roubo a uma casa em Campinas (SP). O problema é que ele não cometeu o crime. Leão, que é policial e fotógrafo técnico pericial, sequer esteve na cidade em que o caso aconteceu.
Ele conseguiu provar a inocência mais de um ano depois. O roubo aconteceu em 9 de junho de 2021, quando seis assaltantes invadiram o imóvel, renderam uma família e levaram joias, dólares, eletroeletrônicos, bicicleta e garrafas de bebidas alcoólicas.
Arma perdida
Naquele ano, Leão trabalhava como policial civil em Barretos (SP), a cerca de 330 km de Campinas. Só que um erro cometido por ele, três anos antes, acabou o colocando na cena.
Em 2018, fui para São Paulo prestar um concurso na Polícia Federal. Eu tinha uma arma particular, um revólver, e eu perdi no banheiro da Rodoviária do Tietê.
Rogério Leão
O policial temia que esse descuido o prejudicasse no processo do concurso público e tomou a decisão de não registrar boletim de ocorrência. Leão só descobriu o paradeiro do revólver em 2021, da pior maneira possível.
Ele foi parar em Campinas e foi esquecido em um roubo. Como não estava com a numeração raspada, identificaram a arma como minha. E, realmente, a arma é minha.
Rogério Leão
Ele foi reconhecido pela vítima com base em uma fotografia de uma CNH antiga, no próprio dia do crime. Só que, em 2021, ele estava de barba e com um corte de cabelo diferente da foto.
Eu estava trabalhando e chegaram dois delegados falando que eu tinha participado de um assalto e fui reconhecido. Fiquei em choque e não conseguia acreditar.
Rogério Leão
'Ninguém acreditava'
Leão chegou ao Presídio Especial da Polícia Civil, em São Paulo, em 16 de junho de 2021. O prédio é anexo ao antigo Carandiru.
Na pandemia e ainda sem vacina, ele ficou 14 dias isolado em uma cela —quase como uma solitária. Não podia sair nem para banho de sol.
Segundo ele, os primeiros dias ali foram os mais difíceis. "Dava medo de dormir, de quererem me agredir. Nunca senti um desespero tão grande, deu vontade de me matar. Tirei forças para lutar até o final."
Desde que eu entrei lá, eu falava: 'vou conseguir sair, só não sei como'. Ficava até revoltado. Eu acreditava que ia sair, mas a questão era o tempo: eu queria sair ontem.
Rogério Leão
Segundo Leão, as celas eram apartamentos com grades na janela e no corredor. Em cada uma ficavam sete ou oito presos dividindo o espaço e o banheiro.
No primeiro momento, você é intimidado. Ninguém acreditava que eu não era culpado. Com o tempo, e convivência, eles perceberam que eu estava falando a verdade.
Rogério Leão
Em busca de provas
Assim que Leão foi preso, começou a saga de reunir provas e comprovar que ele não estava em Campinas e não participou de roubo algum.
Insistindo que não poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo (e tão distantes um do outro), os vizinhos de Leão cederam imagens de câmeras de segurança da rua em que ele morava, em Ribeirão Preto (SP), no dia anterior e no dia do crime.
Uma das gravações mostra o policial chegando ao seu endereço, dirigindo um carro, às 21h53 do dia 8 de junho de 2021. Ele voltava com a mulher de uma consulta no terapeuta.
Em 9 de junho de 2021, Leão apareceu em outra gravação, por volta das 8h53, dessa vez passeando na rua com seus cachorros. No intervalo, o policial civil não saiu de casa, de acordo com as câmeras.
A localização do GPS dos dois celulares dele também indicavam que ele estava em Ribeirão Preto. Apesar da arma, as digitais de Leão não foram encontradas nela ou na cena do crime. Em busca e apreensão em seu endereço, nada de ilícito foi localizado.
Ainda assim, Leão foi considerado culpado e condenado a 15 anos de prisão quase um ano depois, em 2 de junho de 2022, pela juíza Patrícia Suárez Pae Kim, da 1ª Vara Criminal de Campinas.
A Justiça também decretou a perda do cargo público. Para a juíza, o reconhecimento das vítimas foi mais forte do que qualquer argumento apresentado pela defesa —como o GPS do celular e imagens das câmeras cedidas pela vizinhança.
461 dias preso
Quando o processo saiu de Campinas, a 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em votação unânime, acolheu as provas apresentadas pela defesa.
A 2ª instância entendeu que o reconhecimento por foto aconteceu "de forma viciada" e em "situação de extrema tensão emocional e psicológica, perfeitamente capaz de causar falha ou distorção" e absolveu Leão das acusações. Ele foi solto em 21 de setembro de 2022 e o processo foi arquivado.
"Eu demorei 461 dias para mostrar que não tinha nada a ver com isso, que meu único erro foi não ter feito o boletim de ocorrência da arma", afirma ele.
Foi um alívio. Era um lugar que eu tinha que tomar cuidado com o que eu pensava, com o que eu falava. Vivia em estado de necessidade permanente. Eu não era mais o Rogério, eu era tratado como preso. Dignidade praticamente não tem. Perdi quase 20 kg.
Rogério Leão
O pós-prisão
Ainda preso, Leão começou a estudar o próprio processo e a defesa, quis saber mais sobre recursos e leis de execução penal. Foi quando surgiu a vontade de cursar direito. Ele está no segundo semestre do curso na USP de Ribeirão Preto.
"Quando você sai do presídio, você é egresso do sistema, você fica com uma marca. Todo mundo julga, mesmo sendo inocentado. Você percebe o olhar preconceituoso das pessoas. É um desafio."
Ele foi reintegrado à Polícia Técnico-Científica em julho de 2024, onde segue como fotógrafo pericial. Depois de sair do presídio, precisou tomar remédio controlado e fazer terapia. Ele, que já tinha problemas de ansiedade, sentiu a situação potencializar.
É um lugar que marca a sua alma.
Rogério Leão
O que dizem TJ-SP e SSP
Procurado pela reportagem, o TJ-SP afirmou que não pode se manifestar sobre questões jurisdicionais. "Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento", afirmou em nota.
Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente.
Tribunal de Justiça, ao UOL
A reportagem também tentou contato com a juíza Patrícia Suarez Pae Kim, via Tribunal de Justiça, e foi informada que magistrados "não podem se manifestar sobre processos em andamento, pois são impedidos pela Lei Orgânica da Magistratura".
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou ao UOL que as "investigações prosseguem pela Corregedoria da Polícia Civil, que perante a Lei Orgânica da Polícia Civil (LOP) não faz divulgações de decisões administrativas ou judiciais".