'Me traumatizou': os jovens 'desigrejados', que vivem a fé fora dos templos

Em uma breve busca nas redes sociais é possível encontrar relatos de "evangélicos não determinados", conhecido como desigrejados, esse grupo não rompe com os dogmas do Cristianismo, mas se desvincula da forma institucional das igrejas.

O fenômeno dos "desigrejados" ocorre em meio à expansão da comunidade evangélica no Brasil. Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base em dados do Censo 2022, o Brasil tem mais templos ou outros tipos de estabelecimentos religiosos do que a soma de instituições de ensino e unidades de saúde.

O professor Vanderlei Frari, teólogo, mestre em ciências sociais e pesquisador do tema, explica que os desigrejados "se diferenciam por não estarem necessariamente em busca de uma nova igreja, mas sim de uma espiritualidade que faça sentido em seus próprios termos".

Para Milton Paulo Silva, pastor da Igreja Vineyard, em Mogi das Cruzes-SP, o "movimento de 'desigrejar-se' não é novo e não diz respeito a se afastar da fé e seus princípios, mas de desligar-se de instituições". De acordo com o pastor, o cristianismo passa por um problema de imagem pela percepção que muitos acabam tendo de "uma completa desconexão entre Evangelho e práxis da maioria das igrejas."

A igreja acaba dando respostas para perguntas que não foram feitas e dando respostas simplistas (citando versículos apenas) para as reais questões da vida.
Milton Paulo Silva

O tema dos desigrejados esteve presente na ascensão de Pablo Marçal nas pesquisas eleitorais em São Paulo. Ele ligou sua imagem aos evangélicos, mas diz há anos não frequentar igrejas, nem pagar dízimo.

Os fatores para abandonar a igreja

Para Frari, três fatores que levam os jovens, principalmente evangélicos, a se tornarem desigrejados: a perda de credibilidade das instituições, que torna a espiritualidade mais pessoal; a cultura gospel, que unifica práticas e dilui fronteiras denominacionais; e o descontentamento com a neopentecostalização e o neoliberalismo nas igrejas, levando os jovens a se afastarem em protesto contra a corrupção dos valores do Evangelho.

Neste sentido, a desvinculação institucional representa um protesto dos desigrejados contra as estruturas que se deixaram perverter ou que abandonaram os valores centrais do Evangelho.
Vanderlei Frari

Frari explica que os jovens desigrejados não têm um perfil único, mas se destacam por seu trânsito no universo virtual, onde encontram críticas às igrejas e acessam discussões teológicas diversificadas. Diferente das gerações mais velhas, que valorizam a estabilidade profissional e também em comunidades religiosas, os jovens buscam uma espiritualidade autêntica, conectada a questões como justiça social e autonomia.

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Vanderlei Frari
Vanderlei Frari Imagem: Arquivo Pessoal

Gatilhos e preconceito

A jornalista Isabella*, 34, embora evangélica, não frequenta mais uma igreja e questiona se pode ser identificada como desigrejada. A despeito disso, ela concorda com o pastor Milton; para ela, muitas igrejas perdem tempo com questões desnecessárias e investem pouco em problemas que os jovens consideram importantes. "Sempre de um modo muito moralista, pouco complexo, pouco profundo, pouco acolhedor aos sentimentos humanos", diz ela.

Em Sorocaba, ela não encontra igrejas que alinhem seus princípios teológicos com a inclusão LGBTQIA+. Além disso, certas práticas religiosas desencadeiam gatilhos de sofrimento relacionados à sua vida antes de assumir sua sexualidade. Embora reconheça a importância da comunidade religiosa, não sente falta dela e questiona se voltará a frequentar uma igreja no futuro.

"Cada mínima palavrinha que às vezes vem embalada numa teologia, às vezes desperta um gatilho de: "Nossa, foi por isso que eu fiquei presa há tanto tempo, foi por isso que eu fiquei cativa há tanto tempo, foi por isso que eu sofri por tanto tempo?". Porque isso, juntando com esse tipo de crença, mesmo que pareça não ter a ver diretamente com a questão da sexualidade, acaba despertando esses gatilhos", relatou Isabella.

Isabella diz que sua fé não foi abalada e que, na verdade, a sente "consolidada". "Eu consegui encontrar um caminho de não fazer proselitismo religioso enquanto eu ainda estava na igreja, e isso me ajudou a expressar o que eu tenho dentro de mim de forma natural, a minha fé de forma natural. Não foi um abalo da fé, mas um propiciar de viver ainda mais livremente, porque não tenho mais o peso dos julgamentos das igrejas, não tenho o peso dos olhares dos irmãos, então eu consigo viver ainda mais livremente aquilo que eu acredito."

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Constrangido em pregação

Hiago Nascimento frequentou a igreja evangélica por cerca de 15 anos, mas parou de ir por desanimar com experiências negativas. Um episódio marcante ocorreu quando faltou a um culto para assistir a um jogo de futebol e o pastor o constrangeu publicamente durante a pregação. Esse momento de humilhação contribuiu para seu afastamento, que já dura cerca de 5 a 6 anos.

"Eu não sinto nenhuma falta daquele lugar, que consequentemente me traumatizou de conhecer novas igrejas."

Durante seu tempo na igreja, Hiago participou ativamente do grupo de jovens, que era incentivado por um líder carismático que promovia atividades e gincanas. No entanto, um incidente em que o pastor, de forma autoritária, decidiu cancelar um culto importante planejado pelo líder impactou negativamente a comunidade. O líder, que enfrentou problemas pessoais, acabou se afastando, e o grupo de jovens foi se desfazendo.

Eu ainda tenho fé, por mais que duvide diversas vezes. Todavia, o exemplo que tenho em casa sempre me faz lembrar que Deus existe e tem um propósito na vida de cada um, me faz sentir que ainda há esperança, por mais que tenha essa maré puxando contra.
Hiago Nascimento

Casos como o de Isabella e Hiago se multiplicam país afora por reincidentes episódios de abuso espiritual, pregação política e falas preconceituosas. O pastor Milton Paulo avalia que, por uma rejeição ou distorção de muitas igrejas a respeito de pautas sociais, muitos jovens estão se distanciando da instituição. "As pautas sociais (política, meio ambiente, questões raciais, de gênero e sexualidade) são pautas do Evangelho."

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O futuro dos desigrejados

Outro fator importante nesse desigrejamento dos jovens é a nova realidade da cultura digital e das redes sociais. Para o professor Vanderlei Frari, "o ambiente virtual é uma 'faca de dois gumes': facilita a crítica às instituições religiosas, permitindo discussões sobre problemas como autoritarismo, enquanto também conecta desigrejados a comunidades virtuais e práticas de fé fora dos moldes tradicionais, como cultos online e podcasts."

Isabella acredita que "existem muitos desigrejados que estão fora da igreja por conta do extremo conservadorismo e que voltariam se algumas questões fossem resolvidas."

Pastor Milton Paulo Silva
Pastor Milton Paulo Silva Imagem: Arquivo Pessoal

Frari considera que "o futuro da fé evangélica entre os jovens desigrejados pode não necessariamente implicar uma reconexão com a igreja institucional nos moldes tradicionais" e, na opinião do pastor Milton Paulo, ainda há esperança: "Creio que os desigrejados encontrarão um jeito de 'igrejar-se' fora das instituições, com toda a força e potência do Evangelho que eles precisam, sonham e buscam."

*Sobrenome preservado a pedido da entrevistada

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