Youtuber de direita grava aulas e debocha de professores: 'Desrespeito'
A UnB (Universidade de Brasília) abriu sindicância para investigar possíveis infrações do youtuber Wilker Leão, que ficou conhecido por chamar o ex-presidente Jair Bolsonaro de "tchutchuca do centrão". Leão, que é estudante de história da UnB, gravou professores e alunos durante aulas e os expôs em redes sociais com milhões de visualizações.
O que aconteceu
Wilker Leão gravou aulas do curso de história da UnB e publicou em suas redes sociais alegando "doutrinação de esquerda". Nas imagens, é possível ver professores e colegas expostos, enquanto o youtuber os satiriza.
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Os vídeos mostram o youtuber rindo de professores e colegas do curso de história. Leão está no segundo período do curso e grava as aulas desde o semestre passado afirmando que está sendo "perseguido".
Colegas e professores relatam que os vídeos do youtuber são editados e as falas são distorcidas. "Ele distorce as falas, edita as conversas e constrói uma situação irreal. Ele já disse abertamente que faz isso porque dá mais visualizações", disse um colega de Leão, em condição de anonimato, ao UOL.
Uma professora da UnB chegou a registrar boletim de ocorrência por difamação. A docente disse em depoimento que foi chamada de "autoritária" e que os vídeos de suas aulas chegaram ao conhecimento de seus filhos menores de idade, que se depararam com "sucessivos comentários de ódio" da base de seguidores do influenciador. A Polícia Civil do Distrito Federal comunicou que a "ocorrência foi registrada via Delegacia Eletrônica e encaminhada à 2ª DP, que está investigando o que foi narrado".
Professores reuniram documentos e estudam acionar a Justiça no caso envolvendo o youtuber. A comunidade acadêmica assinou um termo proibindo o uso de suas imagens em vídeos publicados por Leão. Contudo, os vídeos continuam sendo publicados. Em partes, as identidades dos presentes são preservadas, mas em cortes específicos é possível ver os rostos de outros alunos e de um docente.
A UnB diz que está prestando auxílio aos docentes e alunos. Em complemento, a universidade citou que "o discente, como parte do seu processo de ensino-aprendizagem, pode fazer uso privado ou pessoal do material pedagógico que lhe é fornecido em sala de aula. Porém, qualquer modificação, alteração ou publicação, sem a devida autorização, fere diretamente os direitos autorais do docente, constituindo uma violação o seu uso para fins diversos do objetivo de estudo". Leia nota completa abaixo.
A associação que representa os docentes da universidade, a ADUnB disse que presta suporte e orientações aos professores. O UOL apurou que uma reunião está marcada para esta sexta-feira (1º) para tratar sobre uma ação judicial coletiva contra o youtuber. Estuda-se um pedido de indenização por danos morais e até sanções internas na universidade.
A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) estabelece que o tratamento e divulgação de imagem só pode ocorrer com consentimento livre, informado e inequívoco do titular.
"A gente tem uma pessoa que não está aqui para estudar e sim para sabotar. Vamos falar disso claramente. A gente não vai ficar fingindo. Essa situação não pode ficar assim. A gente tem uma subcelebridade da extrema direita e ele se matriculou na UnB para fazer esse showzinho, para capitalizar e monetizar em cima da gente. A maior falta de respeito. O cara veio para tocar o terror", diz um professor filmado durante aula.
A reportagem entrou em contato por e-mail com Wilker Leão. Se houver manifestação, o texto será atualizado.
"Doutrinação de esquerda"
O youtuber narra, sem apresentar provas, que as universidades públicas do Brasil impõem uma "doutrinação de esquerda", incluindo a UnB. O acadêmico interrompe as aulas para fazer comentários sobre direitos humanos, racismo, gênero e demais temas enquanto filma rosto e vozes dos docentes e de outros alunos.
Leão tenta inferir que os professores "não têm conhecimento sobre o que estão ensinando" e diz que os docentes fazem recortes específicos nas aulas para manipular o conteúdo. Em um dos vídeos Leão aponta que sofre "discriminação" após professora falar sobre privilégios de pessoas brancas. Leão é um homem branco e afirma que os próprios negros são racistas e que a professora "culpou a branquitude pelos problemas do mundo". "Não foram só negros que foram escravizados. Brancos foram escravizados também", diz Leão em um vídeo. Em outro, ele diz que existe uma "cartilha da esquerda e cartilha a vitimização" quando o racismo é tratado em sala de aula.
"Até onde eu vi a abordagem [policial] não foi truculenta (...) qual problema da polícia chegar com arma na mão?". Em outra gravação de aula, um tema discutido foi a abordagem de policiais do Rio de Janeiro contra adolescentes negros filhos de embaixadores durante férias. Na ocasião, armas foram apontadas aos jovens, com idades entre 13 e 14 anos, e um foi obrigado a tirar a roupa - o fato fez o governo brasileiro pedir desculpas formais aos diplomatas de Burkina Faso, Canadá e Gabão.
O youtuber nega que exista racismo na estrutura da sociedade brasileira. Temas como violência de gênero e policial também são relativizados pelo influenciador.
"Ele distorce as falas", diz colega
O UOL entrevistou um colega de turma de Wilker Leão, que prefere não se identificar por medo de retaliação. O aluno diz que a turma está sendo alvo de ofensas desde que o influenciador começou a publicar os vídeos. Leão tem mais e um milhão de seguidores nas redes sociais.
Colega de turma diz que o youtuber distorce e edita as falas dos professores. De acordo com ele, Wilker faz ponderações fora de contexto e edita o vídeo para colocar os docentes em contradição.
Em apenas um dos vídeos divulgados pelo youtuber na rede social X, foram registradas mais de sete milhões de visualizações. As imagens também foram compartilhadas no Youtube, Instagram e TikTok. Em algumas redes sociais, o conteúdo é monetizado por alcance e número de visualizações.
Ele gravava desde o início, mas a princípio ninguém percebia. Em todas as aulas ele fazia perguntas fora do tema da aula para provocar o professor ou os demais alunos. Nas primeiras aulas só parecia um aluno chato, mas depois de descobrirmos que ele gravava ficou claro que o deboche tinha um objetivo claro. Ele tenta descontextualizar as falas do professor ou pegar respostas soltas.
Colega de Wilker Leão
No início havia debate mesmo com discordâncias do aluno, narra. Contudo, após as divulgações das imagens o clima em sala de aula se alterou, com o youtuber "provocando" para gravar os vídeos.
Ocorreu mais de uma vez tentativas de conversas, pedindo de maneira acolhedora para que parasse, mas todos foram sempre ignorados. Eu e outros alunos fomos conversar com ele individualmente falando que não achávamos legal e que gostaríamos que parasse e ele apenas respondeu 'tudo bem, mas eu não ligo". Quatro professores e uma coordenadora também tentaram conversar para solicitar que isso parasse e ele respondia da mesma forma. Um desrespeito.
Colega de sala de Wilker Leão
Calendário da turma é prejudicado pelas intervenções do youtuber. De acordo com membros da turma, em condição de discrição, aulas foram interrompidas e canceladas após confusões: "há bastante prejuízo ao calendário. Mais de uma vez um debate sobre um determinado livro, texto, autor não pode ocorrer até o fim porque ele desviou a conversa para outra coisa que fosse material para seus vídeos".
Wilker Leão ficou conhecido pelo "tchutchuca do centrão"
Em agosto de 2022, Leão protagonizou uma confusão com o então presidente Jair Bolsonaro (PL). À época o homem, que é formado em direito e cabo da reserva do Exército, já gravava vídeos para as redes sociais.
Youtuber chamou Bolsonaro de "tchutchuca" do centrão. Sob o título "Questionando o gado", se referindo a apoiadores do ex-presidente, Leão ganhou popularidade e viralizou nas redes sociais. O termo 'tchutchuca' passou a ser usado por opositores para se referir a Bolsonaro.
"Quero ver se é corajoso para conversar comigo, tchutchuca do centrão [...] Esse aí está fazendo tudo que o PT faz, senão o PT volta. Seu covarde, safado, vagabundo, estou falando na frente do gado do cercadinho. Cadê o machão?", disse Leão em 2022, algum tempo antes das eleições em que Bolsonaro saiu derrotado.
À época, o youtuber foi repreendido pelo próprio Bolsonaro e confrontado pelos seguranças.
Nota da UnB
A Universidade de Brasília (UnB) finalizou uma sindicância investigativa que resultou na abertura de um Processo Disciplinar Discente para apurar possíveis infrações e determinar as devidas providências. As decisões tomadas em processos administrativos disciplinares no âmbito da Universidade de Brasília (UnB) são embasadas em pareceres técnicos, elaborados por comissões de servidores públicos estáveis (todos com mais de três anos de serviço público), respeitando o devido processo legal e os princípios de imparcialidade, transparência e legalidade que regem o serviço público. O(a) estudante acusado(a) tem direito ao amplo direito de defesa e ao contraditório.
A Administração Superior está em contato com as direções das faculdades que relataram ocorrências, oferecendo apoio e orientação. Nesta semana, ocorrerá mais uma reunião de acolhimento e avaliação.
De acordo com a Nota Técnica Nº 01/2024, do Decanato de Pesquisa e Inovação, sobre os direitos de propriedade intelectual, o material, escrito ou oral, produzido em sala de aula por docentes e discentes é passível de proteção pelos direitos autorais. O discente, como parte do seu processo de ensino-aprendizagem, pode fazer uso privado ou pessoal do material pedagógico que lhe é fornecido em sala de aula. Porém, qualquer modificação, alteração ou publicação, sem a devida autorização, fere diretamente os direitos autorais do docente, constituindo uma violação o seu uso para fins diversos do objetivo de estudo.
A UnB reafirma o seu compromisso firme com os direitos fundamentais à privacidade, à propriedade intelectual, à liberdade de cátedra e à democracia para garantir o ambiente seguro e respeitoso que buscamos cultivar em nossa instituição.
A liberdade acadêmica é um princípio essencial para o avanço do conhecimento e para a formação crítica de estudantes e docentes.
A Universidade de Brasília repudia qualquer forma de violência, intimidação e agressão, reafirmando os seus princípios de cultura da paz e de defesa dos direitos humanos, pautados pelo respeito mútuo e pela ética.