Hospital investigado por 32 mortes em SP não tinha sala de cirurgia, diz MP
O Hospital Municipal Bela Vista, localizado na região central de São Paulo e referência no atendimento à população em situação de rua na capital, vai fechar definitivamente até o fim de novembro. O MPSP (Ministério Público de São Paulo) investiga as condições da unidade de saúde após um relatório do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) mostrar que 32 pacientes internados morreram entre agosto e setembro deste ano. Cinco erros também são investigados.
O que aconteceu
O hospital não tinha sala de cirurgia. O promotor do caso, Arthur Pinto Filho, explicou que, quando necessário, os procedimentos eram realizados à beiro do leito. O relatório do Cremesp mostra que eram 20 UTIs, 18 ocupadas, e 93 leitos de internação, dos quais 84 estavam ocupados. O hospital abriu suas portas em 2020, durante a pandemia da covid-19, e permaneceu em operação por quatro anos.
Dos cinco erros em investigação, apenas um não resultou em morte. O promotor Arthur Pinto Filho explicou que um paciente homem precisava ser aquecido com uma manta térmica e acabou queimado, mas sobreviveu. "Esquentaram tanto o rapaz que ele se queimou", disse Filho. As investigações tramitam sob sigilo.
A Promotoria diz que o relatório do Cremesp aponta 17 mortes nas UTIs do hospital em agosto e outras 15 em setembro. Entre as mortes está o caso de um homem que foi internado com AVC isquêmico, também conhecido como derrame. O promotor detalhou que o paciente precisava fazer um raio-x no tórax para passar um tubo com medicamento pela jugular esquerda.
"Não tinha raio-x naquele no leito naquele momento. O paciente recebeu o cateter venoso central, mas passou mal pouco depois. Após dois dias, conseguiram fazer o raio-x e perceberam que o tubo estava colocado no local errado. Tentaram uma nova passagem pela femoral direita, sem sucesso. Ele [o paciente] foi encaminhado para outro hospital e morreu", afirmou Arthur Pinto Filho, promotor de Justiça dos Direitos Humanos da Área da Saúde Pública.
UTIs não tinham controle de acesso. Segundo o promotor, 18 pacientes estavam internados em UTI tipo 3, quando pacientes têm necessidades de nível de atenção muito alto, mas não havia quantidade de profissionais e qualificação prevista na legislação vigente. As UTIs também não tinham controle de acesso, ou seja, as pessoas entravam e saíam sem que fossem monitoradas.
A unidade de saúde atendia muitos pacientes com tuberculose. O tratamento era feito em duas UTIs específicas para a doença. "Esses dois locais tinham que ser fechados, com ar próprio, para o ar não circular pelo hospital. Mas isso não era feito", ressaltou o promotor do MPSP.
Maioria dos pacientes eram pobres e dependentes químicos. De acordo com o promotor, muitas pessoas atendidas no local viviam na Cracolândia. "É raro ver um hospital com todos esses problemas, como o laudo do Cremesp apontou. São coisas que você não vê mais em São Paulo, erros primários por falta de raio-x. Uma tragédia".
Basicamente, eram pacientes pobres da região central da cidade, gente que não tem condição nenhuma de se organizar. Para se ter uma ideia, a gente [no MP] recebe dezenas de reclamações toda semana de vários hospitais do estado. E esse hospital, o que chamava atenção, é que não vinha reclamação. Conversando com o pessoal que milita e trabalha na Cracolândia há muito tempo, me contaram que são pessoas tão carentes e sem estrutura que sequer sabem como fazer essa reclamação, não têm e-mail, não sabem os caminhos.
Arthur Pinto Filho, promotor do MPSP
Prefeitura diz que hospital será fechado por problemas estruturais
A Prefeitura de São Paulo afirmou que o fechamento se deu apenas por problemas estruturais. O Bela Vista foi interditado pela Vigilância Sanitária estadual no dia 31 de outubro após uma fiscalização feita pelo Cremesp a pedido do Ministério Público.
"A SMS (Secretaria Municipal da Saúde) informou que está entregando o prédio onde funciona o Hospital Municipal Bela Vista de acordo com o pedido do Ministério Público e da Vigilância Sanitária. A interdição do Hospital foi determinada por motivos estruturais, visando adequações técnicas às normas da Vigilância Sanitária", diz nota enviada pela gestão municipal.
O hospital era administrado pela prefeitura em parceria com a OSS (Organização Social de Saúde) Afne (Associação Filantrópica Nova Esperança). Segundo a prefeitura, a secretaria já havia notificado o proprietário do imóvel quanto à necessidade dessas adequações. "Por ser um imóvel locado, a SMS não pode realizar melhorias estruturais diretamente".
A administração municipal não comentou sobre os óbitos e demais problemas listados pelo MP. Os últimos pacientes internados no local estão sendo transferidos para outros hospitais municipais, conforme determinação da Vigilância Sanitária do estado, que também proibiu a internação de novos pacientes. A SMS esclareceu que a previsão é que as transferências terminem ainda esta semana.
Mas, para o promotor do caso, as diversas irregularidades e as mortes precisam ser investigadas. "Em agosto, eu pedi que o Cremesp e a Vigilância Sanitária fossem fazer uma inspeção no hospital, algo comum nas unidades de saúde do estado. Recebemos a informação de que a vigilância interditou o local e nós já recebemos aqui o laudo do Cremesp. Situações muito graves, difícil ver em hospitais", destacou Arthur Pinto Filho.
O Ministério Público diz que aguarda o laudo da Vigilância Sanitária para entender quais são os "problemas estruturais" citados pela prefeitura. "Aparentemente não era uma questão do prédio, mas sim de procedimento do hospital", disse o promotor do caso. Investigação prossegue para determinar as devidas responsabilidades.
Faltou fiscalização da prefeitura, no entendimento do promotor de Justiça. Ele explicou que a Secretaria Municipal de Saúde, quando faz o contrato com a OSS, tem o dever de verificar se a Organização Social de Saúde está cumprindo as normas de forma adequada. "Em primeiro lugar, falhou a própria Secretaria Municipal de Saúde porque não verificou que ali estava acontecendo uma situação muito grave e não tomou providência nenhuma. Em segundo lugar, a própria entidade, a Afne, que tinha o dever de tomar as cautelas para que o lugar trabalhasse de uma forma adequada, não da forma como estavam trabalhando", avaliou.
Hospital já foi investigado pelo MP em 2022
A investigação do MP contra o Bela Vista teve início em 2022. Naquele ano, chegou ao conhecimento do Ministério Público de que o hospital havia criado uma ala de internação involuntária psiquiátrica para pessoas trazidas da Cracolândia. Internações estavam sendo realizadas sem aval do MPSP.
A Promotoria instaurou inquérito civil para apurar se a direção do Hospital Bela Vista estava descumprindo a lei. Na ocasião, o promotor Arthur Pinto Filho ressaltou que a internação involuntária é uma medida excepcional, somente utilizada se comprovada a impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde.
Ele também detalhou que o prazo máximo de internação involuntária é de 90 dias. Por isso, o Ministério Público deve ser informado acerca da data da alta do paciente para que se verifique o cumprimento da lei.
A unidade de saúde não tinha alvará da Vigilância Sanitária estadual. "O hospital não conseguia informar [das internações compulsórias] o MP porque eles não tinham a licença da Vigilância Sanitária, e sem a licença, eles não conseguiam se cadastrar no nosso sistema. A investigação começou porque chegou a informação que eles estavam recebendo esses pacientes sem comunicar ao MP. Fizemos uma recomendação para que as internações parassem imediatamente", afirmou o promotor.
Bela Vista foi referência para atender covid-19 e população de rua
Na época da inauguração, prefeitura detalhou que o hospital tinha capacidade de fazer 1.800 tomografias e 30 mil exames laboratoriais mensalmente. No mês em que abriu as portas o hospital tinha 600 profissionais de saúde e 124 leitos, 29 deles de UTI, segundo nota divulgada pela prefeitura na ocasião.
Investimento na estrutura foi milionário. No total, o poder público pagou cerca de R$ 6,6 milhões nas adequações físicas do prédio e R$ 8,5 milhões em móveis, equipamentos e contratação de profissionais. A ação contou com apoio do Ministério da Saúde, informou a gestão municipal à época.
A nova unidade foi criada já com um objetivo pós-covid: ajudar a população que vivia nas ruas do centro. "Passado o período de pandemia do coronavírus, esse hospital será referência no atendimento de pessoas em situação de rua na região central da cidade", afirmou Covas, em nota, na ocasião.
Hospital foi instalado em um antigo prédio hospitalar desativado, que foi alugado pela prefeitura. O hospital ganhou o nome de "Santa Dulce dos Pobres", em homenagem à santa brasileira, conhecida por sua dedicação aos pobres e doentes, que foi canonizada pelo papa Francisco em outubro de 2019.