'Eles não estão mortos': coveiro mostra o que poucos veem no cemitério
Luciana Spacca
Colaboração para o UOL
23/03/2025 05h30
O mineiro Paulo Lima, 58, trabalhava como mototáxi para pagar a faculdade de direito quando decidiu prestar concurso público para coveiro, em 2017. Ele passou em primeiro lugar e, no início do ano seguinte, começou a trabalhar no cemitério de Barbacena (MG).
Eu não sabia nada de cemitério. Lembro que pensei: quem é enterrado aqui está preso para sempre. Então eu não sou coveiro, sou agente de prisão perpétua. E aí também passei a chamar o cemitério por um apelido, cemiti.
Paulo Lima, coveiro
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Anos depois, ele resolveu começar gravar o dia a dia no cemitério da Boa Morte, onde trabalha, e publicar nas redes sociais: uma rotina que inclui manutenção dos túmulos, sepultamentos e exumações de corpos.
Rapidamente, os vídeos do "senhor Cemiti", como Paulo é conhecido, viralizaram pela forma bem-humorada com que o mineiro mostra a sua rotina e fala sobre assuntos delicados, como morte e luto.
"Eu gravei o primeiro vídeo, postei e deu um milhão e meio de visualizações. De um dia para o outro, eu fui de zero para 25 mil seguidores", lembra.
Eu tenho essa forma mais descontraída de falar e aproveito para trazer as pessoas para mais perto desse meu mundo, para dizer que o cemitério não é uma coisa ruim. Paulo Lima, coveiro
Além de falar sobre a rotina no cemitério, Paulo aborda temas como arte, filosofia e história em suas publicações. A inspiração vem das mais variadas fontes: ele é fã dos vídeos do filósofo Mario Sergio Cortella e do historiador Leandro Karnal, além de leitor voraz de obras de autores como Ariano Suassuna e Napoleon Hill.
"Aqui no cemitério estão enterradas baronesas, tem visconde, tem marquês, tem ex-governador de Minas. Tem a igreja, tem muita arte também. Eu comecei a juntar filosofia com teologia, história e aquilo que eu acho que o povo precisa ouvir, sabe?", explica.
De coveiro a celebridade
Atualmente, Paulo acumula cerca de 450 mil seguidores nas redes sociais e alguns de seus vídeos ultrapassam 3 milhões de visualizações. O sucesso é tanto que é comum ser parado por pessoas que pedem fotos e vídeos quando sai pelas ruas de Barbacena, cidade em que vive.
"Às vezes, tem um enterro e tem gente que espera para depois tirar foto comigo. Eu percebo também que eu tenho um público enorme de crianças. Elas me encontram e falam: olha, é o senhor Cemiti!", brinca o coveiro.
O mineiro afirma que as histórias que envolvem os "espíritos" que vivem no cemitério são as que mais fascinam os seguidores e que dão maior engajamento. "No início, eu pensei que eu estava ficando doido. Mas não estava, é comum avistar espíritos por lá mesmo", revela.
"Eu sempre posto vídeos com casos que eu vi e vivi, e também histórias que meus colegas de trabalho me contaram. A que eu mais me assustei foi o dia em que eu vi uma mulher de vestido amarelo com bolinhas pretas. Eu fazia a limpeza dos túmulos quando avistei a moça. Só quando eu cheguei perto e passei através dela que me dei conta de que era um espírito", conta ele.
"Eu estava perto de um túmulo com a tampa quebrada e o susto foi tamanho que quase caí lá dentro. Imagina, um cemitério com mais de 5 mil tumbas? Se eu caísse, seria uma eternidade para me encontrar", diz.
'Dentro do túmulo não tem wi-fi e nem cofre'
Apesar do bom humor, Paulo revela que também passa por momentos difíceis no trabalho. "O mais difícil é sepultar a criança e ver os pais ali. Porque não é a ordem natural os pais enterrarem os filhos, a ordem natural é os filhos enterrarem os pais", diz.
"De qualquer forma, quando uma pessoa vai ao cemitério, normalmente é triste. Então eu tento tratar isso de uma forma leve e fazer com que as pessoas que estão ali sofrendo, naquela hora, se sintam confortáveis com o meu trabalho, apesar de ser doído demais. Eu sempre dou o meu melhor", afirma.
O mineiro conta ainda que começou a refletir mais sobre a forma como leva a vida depois que passou a trabalhar no cemitério.
Eu acredito que Deus deu a nossa terra e nossos sentimentos. Você vai trabalhar para ter a melhor casa, o melhor carro, ser o melhor marido, a melhor esposa. Só que dentro do túmulo não tem wi-fi, não tem cofre, não tem ar-condicionado. Daqui você não leva nada. Mas, enquanto nós estamos aqui na terra dos vivos, a gente tem de dar o nosso melhor, sempre.
Paulo Lima, coveiro
Paulo também reforça o respeito que tem pelas pessoas que morreram e estão enterradas no cemitério. "Quando você chega no cemitério, tem de pedir licença para entrar. Ninguém entra na sua casa sem pedir, né? E quando for sair, tem de sair de costas, pedir licença e pedir para que as almas não te acompanhem", explica.
"Na verdade, para mim, essas pessoas não estão mortas. Enquanto alguém lembrar e cuidar delas, existe vida. Morrer é ser esquecido."