OPINIÃO
Marçal exagera na agressividade para soar autêntico, mas é tudo calculado
Rosana Pinheiro-Machado
Colunista convidada
16/09/2024 12h39
Duas coisas estão em jogo quando Marçal provoca seu oponente para tirá-lo do eixo. A primeira é o que muito tem se falado nessas eleições sobre economia da atenção como um motor da política na era das plataformas digitais. Ele sabe que pode atrair a ira do oponente e, ao fazer isso, usar essa reação a seu favor, transformando-se em vítima e aproveitando momentos como o gesto do "M" feito com o dedo cortado no hospital.
Mas, além desse fato evidente, há um segundo elemento que merece atenção: Marçal demonstra uma necessidade exacerbada de parecer verdadeiro.
A capacidade de forjar autenticidade é uma peça-chave nestas eleições. Muitos dizem que Guilherme Boulos deixou de ser autêntico quando perdeu a radicalidade e adotou uma postura mais "paz e amor", enquanto a grande vantagem de Pablo Marçal seria sua "autenticidade". Será mesmo?
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Autenticidade e populismo não são temas novos nos debates políticos, mas há algo diferente agora. Estas eleições nos mostram a importância de calibrar a performance da sinceridade. Marçal, com sua agressiva sede de protagonismo, parece estar exagerando na dose. Afinal, nada é menos autêntico do que tentar ser autêntico.
Figuras como Enéas e Maluf passavam a sensação de serem quem realmente eram. Nas democracias do século 20, soar autêntico foi um recurso importante para eleger candidatos no mundo todo, especialmente Donald Trump.
Há mais de uma década, estudos acadêmicos indicam que a autenticidade, mais do que a verdade, se tornou o capital-chave dos populismos de extrema direita que emergiram na última década.
No entanto, autenticidade nunca é espontânea: é uma "sinceridade inautêntica", mediada. Ela é cheia de artifícios e se refere à capacidade de um político parecer verdadeiro consigo mesmo. Isso significa que o que está em jogo é performar sinceridade: é preciso parecer corajoso, falar o que pensa, sem se curvar ao "sistema". Essa impressão é crucial para criar identificação com os eleitores.
Bolsonaro marcou o populismo de extrema direita que "fala o que pensa". Quando presidente, ele era tão tosco e violento que parecia realmente dizer o que pensava. Essa característica era extremamente valorizada pelos eleitores. Ele se conectava com o preconceito ou raiva reprimida, libertando o pensamento envergonhado do eleitor.
Em 2024, autenticidade surge como um tema central nas eleições de São Paulo, refletindo uma dimensão mais ampla da política brasileira. Mas ela precisa ser calibrada —nem pouco, nem muito autêntico. O jogo é soar verdadeiro.
Pablo Marçal aposta na autenticidade exacerbada. Sempre foi exagerado, xingando, ofendendo e acusando sem escrúpulos, ativando os jovens com sua masculinidade performada. Se joga no chão em palestras, gesticula, grita até as veias saltarem, chora e diz ter tomado banho frio diariamente até virar bilionário. Esbraveja, orgulhoso de ter entrado "no shape".
Tornou-se antissistema como nunca, mobilizando influenciadores de marketing digital. No Roda Viva, perturbou os jornalistas com sua rapidez em usar táticas vazias que geram cliques. Um eleitor de Boulos comentou: "O pior é que esse desgraçado mentiroso soa autêntico".
Nas entrevistas que realizei para minha pesquisa sobre política e marketing digital, Marçal surgiu como uma figura admirada por sua sinceridade, garra e coragem. Para muitos, ele parecia uma máquina que falava sem filtro, mas a realidade é mais complexa. Isso foi antes das eleições.
Marçal é bem versado nas técnicas populistas da direita radical e tem intensificado sua abordagem, especialmente após o bloqueio de suas redes pela Justiça. Ele fala como se não tivesse filtros, mas há muitos filtros em jogo. Ele entende o valor de parecer autêntico: um homem comum com "sangue nos olhos" e "pavio curto." Essa postura é estrategicamente importante para atrair seu eleitorado, especialmente os jovens e homens.
No debate da TV Cultura, ele provocou seu oponente Datena falando da forma como "homens comuns falam numa briga de bar." Um eleitor comentou com orgulho: "Ele não tem sangue de barata, é gente como a gente." É interessante notar como a ideia de autenticidade está ligada a uma certa brutalidade, característica relacionada a um tipo de masculinidade brutalizada.
Em uma entrevista recente, com duas irmãs das classes populares do Rio de Janeiro, perguntei o que achavam de figuras como Marçal. Uma respondeu: "Esse é sincero e fala o que pensa, não tem medo". A outra, mais debochada, fez o sinal da cruz e saiu correndo.
A reação da irmã que saiu correndo reflete um Brasil, especialmente feminino, que repudia Marçal e que pode estar crescendo por puro horror da agressividade de sua postura.
Se o jogo não é sobre ser autêntico, mas soar autêntico, Marçal está perdendo o ajuste. Sua "sinceridade exacerbada" pode assustar, parecendo desespero e vontade de ganhar a qualquer custo. Isso é o oposto da moralidade política que clama por sinceridade contra o sistema.
Ao crescer nas pesquisas, perder o apoio de Bolsonaro e depois postar fotos com a família do ex-presidente, perder o apoio de Silas Malafaia e ainda postar foto com ele, e ter múltiplas denúncias e passagens pela Justiça, sua sinceridade começa a ser questionada. Ele corre o risco de se enforcar com a própria corda.
Enquanto isso, no desequilíbrio da calibragem da autenticidade, Nunes —um candidato morno, mas que representa uma agenda de extrema direita definida com o apoio de quem ainda mantém hegemonia no campo— se mantém estável nas pesquisas.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL