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'A esquerda não tem nada a dizer à periferia', diz Vladimir Safatle

Filósofo Vladimir Safatle defende radicalização da esquerda Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress

Do UOL, em São Paulo

13/10/2024 12h00

O filósofo e professor da USP (Universidade de São Paulo) Vladimir Safatle, 50, afirma que a esquerda "não tem o que dizer à periferia".

Em entrevista ao UOL, Safatle, que é filiado do PSOL e suplente de deputado federal pelo partido, acredita que o primeiro turno de 2024 foi um "alerta vermelho" para o PT.

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"Se as coisas continuarem como estão, a extrema direita volta ao poder em 2026, com certeza", diz.

O filósofo, que vem insistindo na tese de que a esquerda brasileira está morta, diz que a política deve caminhar para os extremos não apenas no Brasil, como em todo o mundo.

"Quem dá a pauta do debate hoje é a extrema-direita. O que nos resta até agora é ficar desesperadamente tentando construir frentes amplas para tentar barrar a ascensão da extrema-direita. Com isso, as pautas da esquerda vão se descaracterizando", diz.

Veja os principais pontos da entrevista:

A esquerda nas periferias

As regiões periféricas da cidade de São Paulo ficaram divididas entre os três principais candidatos que disputam a prefeitura: Ricardo Nunes (MDB), Guilherme Boulos (PSOL) e Pablo Marçal (PRTB). Para Safatle, a esquerda não "tem o que dizer para a periferia".

A esquerda não chegou à periferia porque não tem o que dizer para a periferia. O que tem para dizer para a população periférica? Vão ser criadas macroestruturas de proteção social, grandes estruturas de educação pública, vamos fazer ensino secundário totalmente gratuito para que as pessoas não sejam obrigadas a pagar, ou um investimento maciço no sistema educacional? Não tem nada disso acontecendo. Nada disso está na pauta do dia.

A extrema direita diz: 'Agora é cada um por si.' E isso tem um nome, que é empreendedorismo. O problema é que a esquerda integrou o discurso do empreendedorismo e isso é uma lógica suicida. Porque se esse é o jogo, se essa é a gramática, a esquerda não tem nada para oferecer.

Hoje o nosso papel [da esquerda] é a defesa do Judiciário, defesa dos direitos morais, defesa das instituições, defesa da normalidade democrática, defesa dos contratos. Como é que a gente pode ser antissistema? Isso não tem o menor sentido. Por isso que a esquerda morreu. Essa é a razão pela qual ela morreu.
Vladimir Safatle, filósofo e professor da USP

A derrota da esquerda nas urnas

Nessas eleições, o PT elegeu 248 prefeitos. É um aumento em relação às eleições de 2020 e 2016. Mas uma diminuição em comparação com 2012, quando a sigla registrou seu melhor momento nos municípios, conquistando 629 prefeituras, segundo dados do TSE.

Já o PSOL não elegeu nenhum prefeito no primeiro turno de 2024. E perdeu a cidade de Belém (AM), única capital sob sua administração.

Essa eleição foi um alerta vermelho mais forte para o PT. Se as coisas continuarem como estão, a extrema direita volta ao poder em 2026, com certeza. A extrema-direita tem uma lista de candidatos que têm viabilidade eleitoral. Essa eleição mostrou que o governo federal ainda não tem pautas robustas para apresentar que poderiam mostrar uma mudança estrutural na vida das pessoas.

As primeiras prefeituras da esquerda brasileira pós-ditadura tinham um modelo de gestão com práticas que eram copiadas. Entre elas, uma tecnologia de poder que desapareceu por completo. Não há um elemento para ser memorizado. Nessa eleição, a esquerda teve um discurso gerencial.
Vladimir Safatle, filósofo e professor da USP

Eleição presidencial em 2026

Safatle afirma que "o lulismo destruiu o PT". Questionado sobre como a esquerda deve fazer frente às candidaturas de direita e extrema-direita que se projetam para disputar a Presidência em 2026, Safatle alerta para o "envelhecimento dos quadros" do PT e afirma que a legenda não trabalha a renovação de suas lideranças.

Quando o Lula volta, não tem mais pauta. Não tem aquelas ideias-diretrizes, como o Bolsa Família, o Ciência Sem Fronteiras. O PT virou um partido populista de esquerda. Ele coordena uma série de equivalências entre demandas contraditórias. O resultado é a esquizofrenia. Há uma paralisia porque uma demanda vai anulando a outra, não se consegue avançar.

Havia no PT um tipo de estrutura onde o protagonismo deveria ser móvel, mas o Lula era o protagonismo imóvel. O que acontece é que, de certa maneira, o Lula fagocitou todas as outras lideranças para se preservar. Nenhuma outra liderança ganhou autonomia dentro do PT e não teve renovação.

O PT deve tentar -- ou Lula deve tentar -- o Fernando Haddad. Isso mostra um envelhecimento muito brutal dos partidos de esquerda. Anteriormente, os vínculos orgânicos eram a igreja progressista, as universidades e a estrutura sindical. Essa era a tríade que não funciona mais.
Vladimir Safatle, filósofo e professor da USP

A disputa com a extrema-direita

Para explicar as raízes históricas da extrema-direita no país, Safatle afirma que a Ação Integralista Brasileira chegou a ter cerca de 1,2 milhão de membros na década de 1930. "Essas pessoas não desapareceram", diz. Para fazer frente ao crescimento desse campo, o filósofo afirma que a esquerda defender de forma "ferrenha" pautas relacionadas aos trabalhadores.

Um dos grandes erros das universidades foi ignorar a matriz fascista do desenvolvimento da história brasileira. A extrema direita tem uma base, mas não tinha uma organização. Ela cria a sua organização vampirizando estruturas existentes. Não tem nada mais hilário do que a coligação pela qual Lula ganha a eleição pela primeira vez — era uma coligação entre o PT e o PL, o partido do José Alencar.

É importante mostrar para a sociedade uma revogação da reforma trabalhista, da reforma previdenciária, uma luta pela jornada de trabalho de 35 horas, uma luta para que em toda uma empresa tenha pelo menos 30% de representantes dos trabalhadores nos comitês decisórios. Sinalizar claramente que se quer novas relações no trabalho.
Vladimir Safatle, filósofo e professor da USP

A morte da esquerda

Satafle afirma que a esquerda brasileira vive um "horizonte recuado" de ideias. Apesar disso, defende que as bandeiras de igualdade social defendidas pela esquerda continuam necessárias.

Há um horizonte recuado de ideias políticas na esquerda brasileira. Significa que a capacidade de enunciar políticas organicamente vinculadas a esses dois princípios, da igualdade radical e soberania popular, estão tão travadas.

Lutar pela igualdade não é um discurso datado. Muito pelo contrário: foi algo nunca realizado de maneira plena. Ninguém, em sã consciência, vai admitir que uma sociedade desigual é uma sociedade desejada. Todos nós queremos uma sociedade cada vez mais radicalmente humanitária. Esse horizonte não pode ficar obsoleto. Não tem como ele ficar arcaico. Arcaico, na verdade, é a nossa realidade social.
Vladimir Safatle, filósofo e professor da USP

Ruas e movimentos sociais

O filósofo afirma que a esquerda que ocupa espaços de poder e a que organiza protestos nas ruas se tornaram "coisas distintas". Para Safatle, o que se espera das legendas deste campo político quando chegam ao poder "é que ela realize o que prometeu nas ruas". Ele afirma ainda que os movimentos sociais deveriam ter mais autonomia em relação ao governo.

A esquerda se tornou uma forma de traição. Quando assumimos o governo, nunca realizamos aquilo que falamos nas ruas. Sempre tem aquela coisa: 'mas a configuração de forças não nos permite fazer aquilo que a gente quer'. Essa confissão da impotência política é uma coisa terrível, que a extrema-direita não faz. Mesmo não conseguindo realizar aquilo que prometeu nas ruas, ela continua tentando. Isso é uma sinalização muito importante para o seu eleitorado.

Os movimentos sociais são completamente integrados ao quadro político-partidário. Não tem um movimento social que seja autônomo em relação aos partidos de esquerda. Basta pegar os dois mais importantes, o MST e o MTST. Isso mostra um vínculo orgânico. Talvez fosse até melhor que os movimentos tivessem força de pressão externa e mais autonomia em relação aos partidos. A política brasileira carece, especialmente a esquerda, carece de pressões externas.
Vladimir Safatle, filósofo e professor da USP

Novos rumos da esquerda no país

Safatle afirma que o governo precisa de uma oposição à esquerda. Para ele, o PSOL poderia ter exercido essa função, mas o fato de ocupar ministérios no governo [a ministra dos Povos Indígenas é filiada ao PSOL] comprometeria a autonomia da legenda como oposição. Na atual configuração política brasileira, o filósofo diz que quem pauta o debate é a extrema-direita e que resta à esquerda construir frentes amplas.

Teria sido bom para o PSOL que ele fosse uma oposição à esquerda no governo Lula. Essa era a nossa função. O governo Lula precisa de uma oposição à esquerda. Não existe oposição quando você integra a base do governo. Se há uma radicalização, a primeira coisa que o governo fala é 'quer perder o seu ministério? A função do PSOL não era ser o sucessor do PT, era ser um aliado incômodo. O PSOL deveria estar ocupando uma posição de oposição de esquerda.

A esquerda, enquanto força motriz do debate político, morreu. Quem dá a pauta do debate hoje é a extrema-direita. O que nos resta até agora é ficar desesperadamente tentando construir frentes amplas para tentar barrar a ascensão da extrema-direita. Com isso, as pautas da esquerda vão se descaracterizando. A esquerda precisa radicalizar o discurso. Só quem se radicaliza sobrevive. Não existe mais centro, isso é uma ilusão.

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