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Mudanças políticas e sociais no Oriente Médio são impulsionadas por paixão

Aung San Suu Kyi

27/12/2011 06h00

Por que a mudança parece tão desejável e tão estimulante em nossa época? A campanha presidencial de Barack Obama foi movida pela promessa de mudança. Na Birmânia hoje existe um constante debate sobre se o novo governo deseja ou não mudanças reais, ou se não passa da velha ditadura militar com novos trajes civis. Quase todos os dias me perguntam se eu acredito que as medidas tomadas pelo novo governo devem ser consideradas um mero enfeite de vitrine ou um sinal de verdadeira mudança na direção certa. Depois de 23 anos sob o regime autoritário, a impaciência para ver e experimentar mudanças é compreensível. Essa impaciência foi aguçada pelos acontecimentos em outras partes do mundo durante 2011.

Os levantes políticos da Primavera Árabe tiveram tais proporções que mudanças fundamentais e irreversíveis são esperadas em todo o Oriente Médio e também na África árabe em 2012, com possíveis efeitos de reflexo em outros lugares. Se essas expectativas serão cumpridas, dependerá de muitos fatores, como o grau de dedicação daqueles que desejam criar um bravo novo futuro. Estou pensando em "dedicação" aqui como "paixão", no sentido do teórico social Max Weber de dedicação apaixonada a uma causa.

O que você sabe sobre a Primavera Árabe?

As populações da Tunísia, do Egito e da Líbia foram levadas a derrubar regimes aparentemente indestrutíveis por essa paixão, ou foram movidos meramente pelo que Weber repudiava como "excitação estéril"? Certamente seria um sofisma rotular como "estéril" um grito que levou a resultados tão convulsivos. Poder-se-ia argumentar, porém, que a emoção que move os revolucionários da Primavera Árabe foi do tipo que se queima rapidamente, mesmo que ele tenha sido forte o bastante para desferir as primeiras fagulhas de contestação.

Se o impulso original precisou de certa ajuda para transformar aquelas primeiras fagulhas em uma conflagração plena, outro catalisador mais eficaz deve ter agido. Poderia ter sido o poder? O poder do povo, ou o poder da tecnologia da informação ou o poder da solidariedade democrática global, ou simplesmente, afinal, o poder militar, seja seu uso ou a decisão de evitá-lo?

O poder é por natureza latente até que uma força o coloque em movimento. O que é que liga os motores do poder, sejam os tanques e jatos e armas nucleares ou diversos indivíduos ligados por uma causa comum e tecnologia moderna? Os meios para desencadear o poder que poderia mudar fronteiras ou esmagar homens e suas aspirações só pode se tornar ativo quando uma força inicial remove a indecisão e as inibições. O poder da contestação também precisa daquele primeiro impulso para encorajar indivíduos passivos a deixar de lado a inação promovida por décadas de medo ou pela cautela humana natural.

Então, é "paixão versus poder"? Precisa ser "versus"? A paixão e o poder são opostos naturais, ou mutuamente excludentes na promoção da mudança política, seja da variedade "comum" provocada por processos constitucionais em democracias estabelecidas, ou do tipo revolucionário que reformula os destinos de povos e nações?

Também há o tipo de mudança que derrota a categorização fácil. A eleição presidencial americana em 2008 produziu um resultado que certamente não foi comum, mas se a eleição de Barack Obama deveria ser considerada um evento sísmico na história dos EUA ou apenas um marco político é uma questão de opinião. Entretanto, não pode haver controvérsia sobre o resultado do movimento antiapartheid na África do Sul; não apenas ele produziu um abalo tectônico que mudou a paisagem política do país, como modificou as percepções com relação a raça e cor em todo o mundo.

O que evitou que os regimes da Tunísia e do Egito, hoje derrubados, usassem todo o seu poderio administrativo e militar para abafar os movimentos por reformas? O que convenceu os déspotas da Líbia e da Síria a guerrear contra seu próprio povo? E o que fez as forças antigoverno da Líbia e da Síria persistirem em sua luta, mesmo depois que ficou claro que ela seria prolongada e brutal?

Por trás da máscara de ferro da autocracia, não há a carne e o sangue da vontade humana, assim como há uma vontade coletiva de aço por trás de uma multidão desarmada, decidida a exercer seu direito de gritar suas dores e talvez até pegar em armas para afirmar esse direito? E a vontade - que, afinal, é um propósito deliberado e controlado - não está intimamente unida à paixão? Ela pode ser unida como uma intensa emoção transitória, que bem pode não passar de "excitação estéril", ou como uma dedicação duradoura e firmemente enraizada a princípios ou a uma causa, seja algo tão amplo quanto a liberdade ou tão limitado quanto a autopreservação.

Como membro de um movimento que se envolveu em uma longa luta para efetuar mudanças por meios não violentos, aprendi a valorizar acima de todos os outros atributos em colegas e seguidores a dedicação desinteressada e ativa. Essa dedicação raramente é dada a demonstrações pirotécnicas, mas está sempre lá e oferece uma constante garantia de que a chama essencial que mantém nossa causa vibrante não morrerá. É a paixão, não do estilo estéril, mas a paixão que move corações e mentes e faz história. É a paixão que se traduz em poder. Quando essa paixão é levada a atuar sobre questões públicas, é um instrumento potente de mudança política e social.

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Na Birmânia, com frequência, os membros mais ativos de nosso partido e outras forças comprometidas com a luta foram colocados sob detenção, suas vozes silenciadas, seus rostos quase esquecidos pelo público. Diversas vezes eles surgiram como fênix das cinzas, despertando o mundo com seus gritos. Em 2002, depois que fui libertada de meu segundo período em detenção domiciliar, percorri o país e a dedicação de nossos seguidores se traduziu em grandes manifestações entusiásticas que fizeram as autoridades sentirem o poder de nossa paixão. Muito recentemente, a preocupação sobre o destino de nosso rio Irrawaddy uniu pessoas de diferentes grupos étnicos, religiosos e etários, de todas as camadas sociais. Nosso apelo apaixonado por uma reavaliação do projeto da represa foi tão poderoso que o presidente anunciou a suspensão do projeto durante todo o seu mandato.

O processo pode ser revertido, o poder pode se transformar em paixão? O poder que efetua mudança política não pode ser definido como um tipo isolado e único, diferente de todos os outros poderes. Poder do partido, poder do dinheiro, poder da mídia, poder de grupo de pressão e muitos outros poderes influenciam fortemente a evolução política e a revolução. O poder como autoridade do governante apoiado pela máquina do Estado poderia, entretanto, ser considerado um contraste à "paixão". A distinção entre o poder despótico e o poder investido democraticamente é relevante aqui.

Sob que circunstâncias os que têm autoridade desejam trabalhar pela mudança política? Se tudo corre bem, o impulso daqueles que detêm os poderes de Estado é geralmente para a conservação e não a transformação. Somente quando surgem problemas, e nem sempre, os governantes começam a considerar a necessidade de mudanças. Os governantes inteligentes são rápidos para apreender quando a mudança se torna inevitável. Mas perceber a necessidade de mudança não é a mesma coisa que ter os meios para torná-la possível.

Nas sociedades pluralistas, o governo sozinho não pode efetuar mudanças. Muitos outros atores estão envolvidos. As negociações bipartidárias dolorosamente conduzidas para se adotar o acordo da dívida dos EUA, que não parecia agradar a ninguém, demonstrou que o presidente americano não tem os meios suficientes para efetuar a mudança que não apenas ele, mas muitos de seus conterrâneos consideram necessária.

Se o poder presidencial pode ser considerado um ímpeto em direção à mudança neste caso, ele é facilmente dissipado por outros poderes. Dedicação, perseverança, persuasão, a capacidade de conquistar mentes e opiniões podem ser contrapesos eficazes para esses poderes de oposição. Em outras palavras, a paixão pode preencher as lacunas quando o poder sozinho não basta.

É mais fácil para um governo autoritário não perturbado por poderes ou paixões contrários agir de acordo com sua própria vontade. Um déspota brutal que pode agir sem restrições pode mudar não apenas o cenário político, mas a própria psique de uma nação. Durante algum tempo. Sob o brutal absolutismo de Stalin, o terror penetrou nos ossos dos cidadãos e os tornaram irreconhecíveis para si mesmos. Por algum tempo. Então o déspota morreu e o país despertou de seu terrível pesadelo. A população começou a perguntar o que havia acontecido e por que. O poder puro transformou toda uma sociedade? O que permitiu que Stalin exercesse o poder com tal brutalidade?

Se Stalin foi movido pela dedicação a uma causa em que ele acreditava ou se sua ambição pessoal sempre o motivou, pode-se dizer que o elemento que alimentou inicialmente sua máquina impiedosa foi a paixão, embora uma do pior tipo. Enquanto seu regime de ferro continuou, foi uma enorme preocupação com a preservação de sua inviolabilidade, obsessão mais que paixão, que o moveu a cometer alguns dos maiores crimes políticos da história.

Stalin não estava só ao estabelecer seu reino de terror. Um grande número de pessoas colaborou com ele, e alguns daqueles que o fizeram consciente e voluntariamente foram movidos pela paixão; a paixão como dedicação asmudanças políticas e sociais que eles acreditavam que Stalin realizaria por seu país, ou como dedicação pessoal ao homem em si. O poder pode gerar paixão; e o poder precisa da paixão como seu agente.

Com todo o seu poderio, o poder é menos autossuficiente que a paixão; esta gera seu próprio poder. A paixão em si é uma espécie de poder que por sua própria natureza é uma força cinética.

O poder, por outro lado, tende naturalmente a se entrincheirar. Quando o poder se move na direção da mudança política, geralmente o faz porque forças externas - de levantes populares a previsões eleitorais - se tornaram irresistíveis.

A paixão é mais eficaz que o poder como ímpeto para a reforma política. Uma mudança política significativa, porém, precisa ser sustentável. Por isso, a paixão e o poder devem trabalhar juntos como parceiros que se apoiam mutuamente.

Todos desejamos mudanças, mas não há garantia de que ela ocorrerá ou que realmente cumprirá as expectativas. Sempre há um elemento de risco quando pisamos no desconhecido. O maior desafio para a Birmânia e os países da Primavera Árabe, assim como todos os povos que esperam que eles consigam desfrutar as flores e os frutos de seu empreendimento em 2012, será trazer sabedoria para a paixão e o poder, criar uma mistura dos dois que seja ao mesmo tempo eficaz e integral.

* Aung San Suu Kyi, prêmio Nobel da paz, passou quase 15 anos sob prisão domiciliar como líder do movimento democrático na Birmânia, atualmente Mianmar.