Com lei e cooperativa, Uruguai vira modelo para resolver problema de moradia
Era novembro de 2016. Andrés Risso, 42, relembra o primeiro dia livre em seu novo lar, em Montevidéu. “Aproveitei muito, mas, na verdade, não fiz muita coisa. Descansei!” Era o que precisava depois de quase três anos de “muito esforço” na construção de sua casa. “Um sonho realizado!”
O Uruguai tem um dos menores índices de déficit habitacional da América Latina e Caribe, ficando atrás apenas da Costa Rica e do Chile, segundo estudo de 2012 do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), organização internacional, com sede em Washington (EUA), que financia projetos de desenvolvimento econômico, social e institucional na região.
De acordo com essa pesquisa, 26% das famílias do país vizinho não tinham onde morar ou viviam em moradias de má qualidade. Na Costa Rica e no Chile, os percentuais eram de 18% e 23%, respectivamente. No Brasil, 33%. Ainda segundo o estudo, em números absolutos, Brasil e México eram os países com maiores problemas habitacionais.
O dado uruguaio é ainda menor que o apresentado pelo estudo do BID segundo o último Censo realizado no país, em 2011. De acordo com números do governo federal, o déficit quantitativo era de 4%, e o qualitativo, de 15%. O primeiro indicador leva em consideração apenas o número de novas moradias que precisam ser construídas para quem não tem casa ou mora em condições precárias. O segundo inclui carências de serviços de infraestrutura, como energia, água, saneamento básico, coleta de lixo etc.
Esse cálculo é algo que varia muito porque vai depender dos indicadores que são levados em consideração sobre falta de moradia e habitação precária, se a avaliação engloba apenas os aspectos do imóvel em si ou inclui também o seu entorno.
O problema de moradia voltou a ser debatido amplamente depois do incêndio e desmoronamento de um edifício de 26 andares no começo do mês no centro de São Paulo. O prédio Wilton Paes de Almeida, que pertence à União, mas foi cedido temporariamente à Prefeitura de São Paulo, estava abandonado e era ocupado por cerca de 170 famílias sem-teto. A tragédia deixou ao menos quatro mortos. Outras cinco pessoas estão desaparecidas.
Cooperativa e financiamento
Andrés Risso participou ativamente de todo o processo de construção de sua casa, desde o planejamento até a execução da obra. Ele lembra que chegava a passar três semanas sem folga. “De segunda a sexta e sábado até o meio-dia, eu estava no emprego e, durante à noite e nos domingos, trabalhava na obra”, conta o profissional de logística. Eram 21 horas de trabalho semanais na construção.
Em contrapartida, ele conseguiu abater parte do valor da entrada, que normalmente é exigida quando se financia um imóvel e, em geral, é um dos grandes empecilhos de muitas famílias para ter acesso à moradia. “É a forma mais viável de ter a sua própria casa. Se não fosse assim, eu teria que economizar dinheiro por uns bons anos”, diz.
Risso trabalhou para erguer a sua casa e também as de cerca de 50 vizinhos. Juntos, eles formaram uma cooperativa, e foi por meio dela que conseguiram financiamento para a obra. A cooperativa é a dona do conjunto habitacional, embora cada família e seus descendentes tenham o direito de morar nas casas, garantido por meio de contrato firmado com cada um dos cooperados.
Propriedade coletiva
Esse modelo de propriedade coletiva de moradia é único na região, segundo Raúl Vallés, professor da Faculdade de Arquitetura, Desenho e Urbanismo da Udelar (Universidade da República), a maior do país. O sistema de cooperativas foi instituído pela Lei da Moradia, de 1968, legislação pioneira na área.
Essa lei obriga o governo federal a apresentar nos seis primeiros meses de cada mandato presidencial um plano nacional de habitação para os cinco anos seguintes. As ações e projetos são financiados com verbas de um fundo nacional criado por meio dessa mesma legislação.
Segundo Vallés, atualmente, 50% dos recursos desse fundo são destinados ao programa de cooperativas. “A lei garante o acesso a uma solução de habitação e permite que as pessoas possam se juntar e, em conjunto, tenham uma propriedade comum”, explica Vallés.
As cooperativas conseguem construir imóveis de melhor qualidade porque, por conta da autogestão, há uma racionalização e economia no uso dos recursos
Raúl Vallés, professor de arquitetura
Com o apoio de institutos de assistência técnica, que devem ser contratados pelas cooperativas, as próprias famílias decidem sobre cada detalhe da construção dos imóveis. Elas têm autonomia para escolher como serão as casas, que materiais serão usados nas obras, como serão as áreas comuns e o que haverá nelas (espaço de lazer para as crianças, quadras esportivas, creches, bibliotecas etc.).
“A experiência uruguaia indica que as cooperativas conseguem construir imóveis de melhor qualidade porque, por conta da autogestão, há uma racionalização e economia no uso dos recursos, na compra dos materiais etc.”, analisa.
As obras são financiadas com dinheiro emprestado pelo Banco Hipotecario Uruguayo (uma espécie de Caixa Econômica Federal), que oferece 85% do valor do imóvel e cobra juros menores que os praticados no mercado. Ao fim das obras, as casas são distribuídas por meio de sorteio.
A administração do conjunto habitacional também é de responsabilidade coletiva. Cabe ao grupo tomar as decisões, por meio de assembleias nas quais cada família tem direito a voz e voto.
“A participação e a autogestão, no caso uruguaio, são condições ‘sine qua non’ [indispensáveis]. Se não há essa participação, se não há autogestão, dificilmente um grupo consegue realizar todo o processo, desde a solicitação de um empréstimo até a realização da obra e o pagamento do empréstimo ao longo do tempo”, afirma Vallés.
Modelo replicado
Um ano após a sanção da Lei de Moradia, foi criada a Fucvam (Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua), uma organização sindical que reúne atualmente 515 cooperativas de moradia, representando em torno de 22 mil famílias de várias partes do país, principalmente da capital.
Nos anos 1970 e 1980, a tendência foi a de construir conjuntos habitacionais na periferia de Montevidéu. A partir dos anos 1990, com a deterioração das áreas centrais, a federação estimulou a formação de cooperativas para a reforma de prédios antigos e muitas vezes abandonados nos bairros centrais da cidade. Os imóveis eram adquiridos pela prefeitura e cedidos às cooperativas, que ficavam responsáveis pelas obras.
Também a partir da década de 90, o modelo uruguaio de acesso à habitação começou a ser levado para outros países da América Latina, inclusive o Brasil. Na cidade de São Paulo, foi criado durante a gestão de Luiza Erundina (PT) um programa de construção de moradias por meio de mutirões que eram autogeridos.
No início dos anos 2000, com o apoio do Centro Cooperativo Sueco, hoje We Effect, a federação desenvolveu um projeto de cooperação para replicar o exemplo uruguaio em 15 países da região. Em 2012, a iniciativa foi premiada internacionalmente pela entidade World Habitat.
Na opinião de Raúl Vallés, o principal entrave para que o programa de cooperativas do Uruguai seja efetivamente reproduzido em outros países é a falta de uma legislação específica que garanta a propriedade coletiva da moradia. “Todo o programa pode ser replicado: o mutirão, a gestão coletiva, a participação, a formação de uma cooperativa. Mas, se na legislação não existe a figura da propriedade coletiva, que é o coração do programa, não dá para reproduzir exatamente como é aqui”, afirma o professor.
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