Palestina ou Israel? Crimeia russa? O que acontece quando o Google Maps tem que decidir
Um mapa não é simplesmente um mapa. Ao trazer nomes, capitais e fronteiras, ele define, em última instância, se um país existe ou não. Precisa, portanto, tomar decisões políticas.
O Google Maps, talvez o mapa mais popular da atualidade, não foge à regra. Desde que foi criado, em 2005, o serviço da empresa norte-americana precisou se posicionar em uma série de conflitos na hora de representar territórios.
Isso fez com que, algumas vezes, fosse acusado de tomar lados ou negligenciar áreas, povos e tradições em diferentes partes do globo.
Para contornar problemas do gênero, o Google chegou a apresentar nomenclaturas ou traçados diferentes, dependendo de onde o mapa fosse acessado. O exemplo mais latente foi o da Crimeia.
Anexada pela Rússia em 2014, contra a vontade de boa parte da comunidade internacional, a região era representada como território de Putin, se acessada de Moscou, ou como parte da Ucrânia, fosse consultada de Kiev. Do Brasil e outros países, era representada com uma linha pontilhada, sinal de território em disputa.
Mas a solução tampouco liberou o Google de controvérsias. Ver-se livre delas, no fundo, é uma missão impossível na cartografia.
Isso porque todo mapa tem um autor, explica a professora de cartografia do Departamento de Geografia da USP Fernanda Padovesi Fonseca. Ela afirma que qualquer representação reflete a visão de quem o construiu.
Veja algumas dessas questões controversas:
Israel x Palestina
Não são poucas as polêmicas em que o Google está envolvido na região. Entre elas, nomear assentamentos israelenses em lugar de vilas palestinas destruídas ou não nomear os Territórios Palestinos Ocupados por inteiro.
Essa última questão veio à tona em 2016, quando o serviço foi acusado de simplesmente deletar a Palestina do mapa. Na ocasião, popularizou-se a hashtag #PalestineIsHere (a Palestina é aqui, em tradução livre), e uma petição online para incluir o nome no mapa teve mais de 250 mil assinaturas.
A petição dizia que o reconhecimento da Palestina pelo Google poderia ser mais importante do que o reconhecimento do Estado pela ONU (Organização das Nações Unidas).
O Google se defendeu alegando que nunca havia identificado a Palestina pelo nome e que um erro havia apagado as etiquetas Cisjordânia e Faixa de Gaza --o que foi corrigido depois. Reconhecida por 138 países no mundo e considerada um Estado observador não membro na ONU, a Palestina em 2018 não aparece no mapa sob seu nome.
Entre outros imbróglios do serviço na região está o de identificar assentamentos israelenses, enquanto cidades e vilas palestinas são representadas de forma rudimentar, e o de mostrar apenas estradas israelenses na Cisjordânia, que palestinos não podem utilizar.
Golfo Pérsico x Golfo Árabe
Entre o Irã e a Arábia Saudita, as águas que banham os países são chamadas por Teerã de Golfo Pérsico e, pelo outro lado, de Golfo Árabe. No Google Maps, o nome escolhido foi: nenhum. O serviço simplesmente não dava nome à área.
Ao tomarem conhecimento do fato, autoridades iranianas ameaçaram processar a empresa. “Se o Google não corrigir esse erro o quanto antes, vamos apresentar uma queixa oficial”, disse o então ministro de Relações Exteriores do país, Ramin Mehmanparast, segundo a BBC.
O Google se defendeu dizendo que nunca deu nome à porção de mar e que o serviço não identificava todos os lugares do mundo. Atualmente, a região é identificada como Golfo Pérsico com o acréscimo, dependendo da busca feita, de que é também conhecida como Golfo Árabe.
Camboja x Tailândia
“Radicalmente enganador”, “profissionalmente irresponsável” e “desprovido de verdade e realidade” foram as palavras escolhidas pelo então secretário de Estado do Camboja, Svay Sitha, para descrever o Google Maps em 2010.
Ele se referia à representação de um trecho da fronteira entre seu país e a Tailândia, disputada pelas duas nações, e exigia a mudança imediata do mapa. O trecho em questão abriga o templo Preah Vihear, construído no século 11 e atribuído ao Camboja em 1962 pela Corte Internacional de Justiça. Tailandeses, no entanto, nunca aceitaram a decisão. No mapa do Google daquele ano, o templo aparecia em território tailandês.
Uma busca hoje no Google Maps mostra Preah Vihear em território cambojano.
Costa Rica x Nicarágua
Não foi exatamente uma escolha, mas um erro mesmo do Google Maps causou um conflito entre os países caribenhos. Tratava-se de um erro de 2,7 quilômetros.
Em 2010, o jornal costa-riquenho "La Nación" noticiou que, com base na imprecisão que atribuía à Nicarágua parte do território da Costa Rica, o comandante nicaraguense Eden Pastora mandou tropas para o local, que retiraram a bandeira costa-riquenha ali fincada, substituindo-a pela nicaraguense.
O Google corrigiu as fronteiras posteriormente e divulgou um comunicado atribuindo o erro ao Departamento de Estado norte-americano, responsável por prover a informação. O comunicado também dizia: “Os mapas do Google são de alta qualidade, mas de nenhuma forma devem ser usados como referência para decidir ações militares entre países”.
Kosovo e Taiwan: independentes?
Nenhum dos dois territórios é reconhecido pelo Brasil como nações independentes. Para o Itamaraty, o Kosovo é parte da Sérvia, e Taiwan integra a China.
Já no Google Maps, uma linha tracejada marca a divisão entre o território kosovar e o sérvio, o que significa tratar-se de uma "fronteira em disputa". Taiwan, por ser uma ilha, não tem suas fronteiras demarcadas.
Por outro lado, as capitais reivindicadas pelos dois territórios, Pristina no caso de Kosovo e Taipei, no de Taiwan, são sinalizadas com o ícone que indica capitais reconhecidas, como Brasília e Washington DC. A sinalização permite interpretar que a empresa reconhece essas cidades como sedes dos governos nacionais. Mais uma vez, mapas nunca são simples.
Por que mapas não são isentos
Na história da cartografia, diversas já foram as alternativas criadas para refletir o espaço, lembra a professora Fernanda Fonseca, da USP.
As mais famosas são as chamadas projeções de Mercator e a Peters, difundidas pelos cartógrafos Gerhard Mercator e Arno Peters, respectivamente. Durante muitos anos, o debate girou em torno da disputa entre esses dois tipos de mapa, explica Fonseca.
O primeiro sempre foi muito criticado por valorizar os países desenvolvidos, do hemisfério Norte, que aparecem muito maiores do que os países do Sul. O segundo, por deformar os continentes, embora preserve as proporções das faixas de terra. Segundo Fonseca, no entanto, essa dualidade entre as duas projeções é restrita.
“Essa é uma discussão que cartógrafos acham empobrecida, porque existem mais de 200 projeções e propostas muito mais interessantes que as de Mercator e Peters para se representar o globo”, diz a professora.
Fonseca cita o livro “How to Lie with Maps” (como mentir com mapas, em tradução livre), do geógrafo norte-americano Mark Monmonier. A obra é famosa por mostrar como é possível distorcer a realidade e contar outras versões da história a partir de questões de escala, símbolos, cores e textos.
“Não apenas é fácil mentir com mapas, mas é essencial”, diz o autor na abertura da obra, uma referência à importância das escolhas tomadas nessas representações. Monmonier explica que, da mesma forma como “pequenas mentiras” são necessárias, por vezes autores lançam mão de “grandes mentiras” para atingir certos objetivos com os mapas.
O geógrafo cita diversos exemplos de grandes mentiras no livro. Durante a Guerra Fria, conta ele, a União Soviética distribuía à população mapas de seu território com erros deliberados. Vilas, costas, rios e estradas eras registrados fora de lugar, uma forma de confundir inimigos que tivessem acesso ao material. Mapas soviéticos de Moscou tampouco incluíam prédios da KGB, assim como outras construções importantes.
“Dependendo do objetivo para o qual você vai utilizar o mapa, você vai fazer escolhas. O que não pode ter é a naturalização dessas escolhas. Pensar que uma projeção é mais correta porque estamos acostumados a ela”, defende Fonseca.
Como o Google não foge à regra
Ao UOL, o Google explicou que, para tomar essas decisões, consulta diversas autoridades e instituições internacionais, entre elas a ONU, a ICANN (Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números) e a ISO (Organização Internacional de Normalização). Mas muitas vezes essas entidades podem diferir entre si e, principalmente, diferir da visão do país em que o serviço é acessado. Casos assim já levaram o Google a ser confrontado na Índia, na China, no Irã e na Palestina, entre outros locais.
“Queremos representar a complexidade do mundo e isso por vezes nos leva a essas situações embaraçosas”, disse o geólogo do Google Ed Parsons em uma entrevista ao jornal britânico "Independent", em 2014.
O UOL questionou o Google sobre algumas de suas representações, o processo para chegar a elas e também as situações de confronto com determinados países. A empresa apenas respondeu que "reflete disputas de fronteiras em seu mapa, mostrando o nome mais relevante dependendo da localização do usuário e de sua preferência de linguagem".
Em um artigo publicado em 2016 pelo jornal Washington Post, a norte-americana Caitlin Dewey chamou a atenção para o fato de que, em sua tentativa de documentar o mundo físico online, empresas de tecnologia acabam, também, moldando nossa visão de mundo. E o perigo reside aí.
Nesse cenário, nos últimos anos, serviços alternativos e colaborativos de mapeamento online surgiram, para suprir demandas que a gigante do Vale do Silício e outras empresas não dão conta ou não têm interesse em dar. Maps.me, Palestina Open Maps e o openstreetmap.org são alguns exemplos. Todos eles, também, com suas porcentagens de distorções.
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