Pagã para luteranos e sagrada para hindus: a cremação nas religiões
Felipe van Deursen
Colaboração para o UOL
07/06/2024 04h00
Seja por motivações espirituais, ambientais ou meramente pessoais, a cremação é algo cada vez mais popular em diversos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a taxa bateu nos 60% em 2023 e pode chegar aos 80% na próxima década.
No Japão, na Índia e em outros lugares com maiores proporções de budistas e hindus, a cremação é o padrão: ela não só não é um tabu, como é vista como a forma apropriada de tratar os mortos. Até Buda teria sido cremado.
Quanto às outras religiões, basicamente nenhuma apoia a cremação. Mas também não há proibições explícitas. Entre os cristãos, a posição é basicamente a mesma nos principais segmentos.
No Brasil, segundo dados de 2021 do Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep), a taxa de cremação era de 9%, com tendência de crescimento.
Além das motivações citadas acima, há outras, mais pragmáticas, como os custos às vezes proibitivos envolvendo caixão e túmulo. Defensores da cremação alegam ainda questões urbanísticas, pois cemitérios muitas vezes não têm como crescer e ocupam áreas das cidades que poderiam ter outro uso, como parques.
Veja como algumas das principais religiões do mundo enxergam o tema.
Católicos
A doutrina católica determina que o corpo humano não é só um receptáculo para a alma, mas parte integrante do ser. É a morada do Espírito Santo, santificada pelos sacramentos.
A cremação só foi incentivada em um passado remoto na Europa, durante crises epidêmicas ou após batalhas sangrentas, quando se acreditava que montanhas de corpos podiam espalhar doenças se não tivessem um destino apropriado rapidamente.
Atualmente, o Código de Direito Canônico de 1983 recomenda que "o piedoso costume do enterro cristão seja mantido". Mas ele não proíbe totalmente a cremação.
Há nuances também entre as cerimônias de cremação. Enterrar as cinzas ou jogá-las no mar são mais aceitas do que práticas vistas como desrespeitosas, como transformá-las em joias ou espalhá-las pelo ar.
Luteranos
Para luteranos, cremação é uma prática pagã. Era algo que antigos gregos e romanos faziam, não recomendado a fiéis cristãos.
O reverendo George Henry Gerberding, em "O Pastor Luterano" (1902), se referiu à cremação como algo que desonra o corpo, "o templo do Espírito Santo". Quem opta pela prática nos dias de hoje o faz por motivações que não são ligadas à religião.
Anglicanos
Na década de 1870, o bispo de Londres fez uma dura crítica à cremação. Ele afirmou que é algo capaz de "minar a fé da humanidade na doutrina da ressurreição do corpo, acelerar a rejeição de uma cosmovisão bíblica e assim provocar uma revolução social desastrosa."
Isso não fez com que os fiéis da Igreja da Inglaterra seguissem a recomendação à risca. Além disso, há famosas exceções. Em 1908, o decano da Abadia de Westminster determinou que todas as pessoas notáveis que seriam enterradas no templo a partir de então deveriam ser cremadas. O primeiro foi Henry Irving, um famoso ator da época.
Metodistas
Um tratado de 1898 afirmou que a cremação antecipa a aniquilação do corpo humano, interrompendo a crença no processo de ressurreição para a vida eterna. Mas desde os anos 1990 não há uma recomendação específica. A Igreja Metodista trata o assunto como algo privado das pessoas e suas famílias.
Muçulmanos
Em termos gerais, assim como os cristãos, os muçulmanos também desaprovam a cremação, alegando que é algo indigno do corpo humano. Mas um movimento islâmico específico, o coranismo, defende que a prática é uma alternativa aceitável ao sepultamento.
Os coranistas diferem de sunitas e xiitas porque atribuem ao Alcorão a única fonte aceitável para assuntos não só religiosos, mas também de jurisprudência e legislação. Na prática, isso resulta em visões bem diferentes para certos aspectos do cotidiano.
Como o Alcorão não fala nada de aborto, então os coranistas não o condenam. Além disso, para eles, homens e mulheres podem rezar juntos e a menstruação não é um impeditivo para as orações entre mulheres.
Judeus
Os principais ramos desaprovam a cremação. Entre judeus reformistas, tidos como os mais liberais, a prática não é condenada, mas os rabinos ainda recomendam o enterro tradicional.
Isso não segura a onda crescente de cremações. Nos EUA, onde a maioria dos judeus não é ortodoxa, cada vez mais cemitérios judaicos estão aceitando a prática, segundo o jornal "The Jewish Chronicle".
Hindus
O microcosmo de todos os seres é um reflexo do macrocosmo do Universo. O antiesti, ou último sacrifício, é o rito fúnebre dos hindus, que quase sempre envolve cremação. A alma, eterna, é liberada no ritual, enquanto o corpo (e o Universo) são transitórios.
Na cidade sagrada de Varanasi, existe até um "rei da cremação", que comanda as cerimônias às margens do Rio Ganges. O maior centro de cremação da cidade pode receber até 150 corpos por dia.
A familiaridade dos indianos com a cremação propiciou algumas das imagens mais impressionantes da pandemia, em 2020. No auge da crise, as autoridades de Délhi precisaram improvisar piras, porque os cemitérios já não davam conta. Mais de 19 mil pessoas morreram de covid-19 na metrópole.
A medida não gerou controvérsia, porque, afinal, o hinduísmo prioriza a cremação. Mas a possibilidade de uma eventual política de cremação compulsória durante a pandemia gerou temor em outras religiões.
Em 2020, A Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-ameríndia (AFA) enviou um ofício ao Ministério Público do Estado da Bahia (MPE/BA) e ao Ministério Público Federal (MPF) solicitando que seguidores do candomblé mortos pelo coronavírus não fossem cremados compulsoriamente.
No candomblé, o corpo precisa ser enterrado no chão, a fim de encerrar o ciclo da vida e liberar o espírito da pessoa. Ou seja, a pessoa também não pode ser enterrada em gavetas lacradas.
Se a cremação está crescendo em diversas partes do mundo, isso não ocorre por motivos religiosos. Mas apesar deles.