1755: terremoto arrasou Lisboa e fez sociedade questionar papel de Deus
Giovanna Arruda
Colaboração para o UOL
28/08/2024 12h00
Um terremoto de magnitude 5.3 na escala Richter atingiu cidades em Portugal na segunda-feira (26). Apesar de não estar em locais com falhas geológicas que favoreçam o fenômeno, Portugal já teve um terremoto grave que causou a morte de ao menos 50 mil pessoas.
Terremoto fez Portugal relembrar episódio histórico
O terremoto recente assustou Portugal e trouxe à tona os registros históricos de um outro tremor, muito mais intenso, que atingiu o país em 1º de novembro de 1755. Na ocasião, a magnitude do fenômeno foi estimada em 9, causando um tsunami e destruindo a capital portuguesa, Lisboa. O efeito do maremoto causado pelo tremor foi registrado até na Paraíba, no Nordeste brasileiro.
Terremoto e tsunami foram seguidos por incêndios. Registros da época indicam que os focos de fogo em Lisboa teriam durado seis dias. O fenômeno aconteceu no Dia de Todos os Santos, e as velas usadas nas celebrações das igrejas teriam dado início aos incêndios e multiplicado as chamas.
O terremoto de 1755 registrado em Portugal é o maior da história da Europa. Ao menos 50 mil pessoas morreram no país em decorrência dos tremores, que foram sentidos também no Marrocos, no continente africano, onde outras dez mil pessoas morreram.
O terremoto de 1755 e a crença em Deus
Desastre fez fiéis clamarem por misericórdia. Relatos divulgados pela rede britânica BBC indicam que, ao sentirem o primeiro tremor, muitas pessoas foram a uma praça próxima ao Rio Tejo. Ali, a multidão era formada por "cônegos da igreja patriarcal em suas vestes roxas e avermelhadas, vários padres que haviam fugido do altar em suas sagradas vestimentas em meio à missa festiva, senhoras seminuas e outras sem sapatos". Segundo o relato do comerciante inglês Sr. Braddick, que estava no local no momento do terremoto, as pessoas se ajoelharam e passaram a implorar a Deus por misericórdia.
Um segundo tremor atingiu a região. O segundo abalo, ainda mais forte que o primeiro, teria acontecido "no meio da devoção" dos fiéis.
A igreja e seus seguidores procuravam culpados pela tragédia. Naquela época, nomes como o matemático alemão Gottfried Leibniz e o poeta inglês Alexander Pope sugeriam encarar o dilema histórico sobre "o que é o mal", afirmando que qualquer manifestação do mal não passava de uma aparência do mal, resultado da incapacidade dos humanos de compreender sua função dentro do todo, explica a BBC.
A filosofia predominante era que vivíamos no melhor de todos os mundos possíveis, que mesmo nesses desastres havia providência divina. Deus estava elaborando algum plano e não cabia a nós questionar.
Edward Paice, autor de A Ira de Deus - A Incrível História do Terremoto que Devastou Lisboa em 1755 à BBC Witness
Gravidade do fenômeno mudou a forma com que os terremotos eram vistos. Até então tido como castigos ou manifestações divinas, a partir de 1755 pensadores como Immanuel Kant passaram e refletir sobre os terremotos como fenômenos naturais, e não um evento causado por motivos sobrenaturais ou de cunho religioso.
Pensador francês duvidou da bondade de Deus perante eventos como o terremoto. Pouco depois do terremoto, Voltaire escreveu o "Poema sobre o desastre de Lisboa", em que questiona um Deus que podia ver algo de positivo em um acontecimento com proporções catastróficas e com tantas mortes. Segundo historiadores ouvidos pela BBC, Voltaire já era conhecido por criticar a interpretação teológica da natureza e muitas de suas obras ironizavam a ideia de que Deus de alguma forma governava todos os assuntos humanos.
Filósofos passaram a discutir se o sofrimento poderia ser atribuído a Deus. Enquanto Voltaire acreditava que não havia mais formas de justificar episódios sofridos em nome de um bem maior, o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau acreditava que a responsabilidade pela dimensão do terremoto em Portugal era dos próprios moradores e da estrutura da cidade.
Quantos infelizes pereceram porque um queria resgatar suas roupas, outros seus papéis, outros seu dinheiro?
Jean-Jacques Rousseau
Reconstrução da cidade, legado e homenagens
Marquês de Pombal foi o responsável por colher informações sobre o terremoto em Lisboa. Além de reunir informações sobre o acontecimento e identificar padrões que se tornariam a base da sismologia atual, Marquês de Pombal também pensou na reconstrução da cidade levando em conta eventuais novas tragédias naturais, trocando as ruas estreitas e sinuosas por avenidas largas e espaços amplos e ventilados.
Pode-se dizer que 1° de novembro de 1755 é a data de nascimento da sismologia, que hoje é estudada com base nesse acontecimento
Maria João Marques, do Centro do Terremoto de Lisboa, à BBC Reel
Museu foi inaugurado na capital para contar a história do terremoto de 1755. A experiência imersiva Quake: Museu do Terremoto de Lisboa permite que os visitantes revivam o acontecimento, considerado o "mais dramático e transformativo de Lisboa".
Terremoto é citado na arte portuguesa. O tema virou álbum conceitual de uma banda de metal, o Moonspell.
País não está em falha geográfica
Especialistas buscam entender a ocorrência de terremotos em Portugal. O país não está situado em uma região com falha de placas tectônicas mas, ainda assim, sofre com abalos sísmicos de diferentes intensidades. Antes do tremor recente, outros terremotos já foram registrados em Portugal. Em 1969, o fenômeno alcançou magnitude de 7.9 na escala Richter. Por ter se formado mais longe da costa, o terremoto, apesar de intenso, não causou estragos como o episódio de 1755. Já em 2009, um novo tremor foi registrado na costa sul de Portugal, com magnitude 5.6.
País fica perto de fronteira de placas. Especialmente na região sul e nos Açores, Portugal está suscetível a atividades sísmicas por estar localizado perto da fronteira entre as placas tectônicas Eurasiática e Africana.
Estudos na área indicam que uma das placas está começando a afundar e deslizar sob a outra, gerando uma divisão horizontal na crosta.
O que aconteceu
O terremoto da última segunda-feira se originou no mar e foi sentido com maior intensidade em Setúbal. O epicentro foi localizado a 60 km da região, em alto-mar, às 5h11 (horário local), segundo informou o IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera). O Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS) estima profundidade de 17,5 quilômetros. Outros três tremores também foram registrados: de 1,2, outro de magnitude 1,1 e o terceiro de 0,9. Autoridades portuguesas descartaram risco de tsunami.
Efeitos foram sentidos também em Lisboa, Porto e Coimbra. Celebridades brasileiras que sentiram os tremores relataram a experiência.
Não há informação de vítimas ou danos materiais graves devido aos tremores. Diversas câmeras de segurança flagraram o momento em que o terremoto chacoalhou a região.