Proposta de Suplicy faria 'cracolândias' sumirem? Como é a sala para droga


Na década de 1990, a Alemanha acabou com o maior ponto de uso de drogas a céu aberto do país, que ficava em Frankfurt, criando salas supervisionadas para o consumo de drogas, além de outras medidas, como as terapias de substituição. Neste ano, uma proposta parecida deve ser analisada por deputados de São Paulo.
O que aconteceu
Projeto prevê a instalação de salas seguras para usuários de droga em todo o estado de São Paulo, em uma tentativa de acabar com a "cracolândia". O texto diz que os espaços também devem oferecer serviços básicos como alimentação, banho e cursos profissionalizantes, além de equipes multidisciplinares. O projeto de lei é de autoria do deputado estadual Eduardo Suplicy (PT).
Deputado defende que atuais políticas de combate às drogas são ineficazes. "Tratamentos baseados apenas na abstinência nem sempre se mostram efetivos, muito menos o emprego de repressão policial e persecução penal contra os usuários", diz o texto.
Proposta é inspirada na Europa. Na década de 1990, as cidades de Frankfurt e Zurique criaram salas supervisionadas para o consumo de droga e conseguiram acabar com os pontos de aglomeração de usuários nas ruas. A medida foi adotada após anos de uma política de tolerância zero contra usuários e repressão policial.
Cidades optaram por 'fix rooms'
Frankfurt, na Alemanha, criou um escritório para discutir as cenas abertas de uso de drogas em 1989. Naquele momento, cerca de 1.500 usuários estavam concentrados ao redor da estação de trem Taunusanlage, na região central da cidade, e a maioria deles usava drogas injetáveis livremente na rua.
Primeiro passo foi instalar um grande abrigo, um ambulatório e um café para acolher usuários daquela área. O governo também ampliou seu programa de terapia de substituição, trocando a heroína por opioides, geralmente metadona, com quantidade estipulada e o uso monitorado por um médico. A abstinência não é necessariamente uma das metas deste tipo de tratamento, mas sim o controle do vício.
Em 1994, a cidade criou a primeira sala supervisionada para o consumo de drogas. No local, dependentes têm acesso a seringas e todo material esterilizado para o uso da substância, e recebem acompanhamento médico em casos de overdose. O espaço possibilita ainda que assistentes sociais façam contato com dependentes e possam apresentar opções de tratamento para o vício. Outras três salas foram abertas em 1996.
Polícia manteve ações para a desocupação de Taunusanlage, porém as operações só foram feitas após o governo disponibilizar os abrigos e as salas para o consumo de droga. Os agentes também eram orientados a informar os dependentes sobre essas alternativas.
Se a polícia remover um grupo de pessoas de um determinado lugar da cidade, eles precisarão ir para outro lugar. Portanto, a chave aqui é disponibilizar serviços de habitação, tratamento e saúde em diferentes áreas próximas das pessoas necessitadas.
Thomas Clausen, autor do estudo "Cenas abertas de uso de drogas: respostas de cinco cidades europeias"
A mudança na política de drogas não ocorreu pela convicção nas opções que se tornavam populares, como terapias de substituição, mas pela necessidade de que algo novo precisava ser feito, já que o tradicional não estava funcionando.
Dirk Schäffer, assessor para drogas e sistema penal da organização Deutsche Aids-Hilfe
A experiência alemã foi bem recebida pelo público e pelo sistema político, dizem pesquisadores. Embora novas cenas de drogas tenham aparecido, especialistas dizem que a maioria foi dispersada e o cenário não retornou ao que era na década de 1980.
A Suíça também criou clínicas supervisionadas para o consumo de drogas após viver uma grande epidemia de heroína entre os anos 1980 e 1990. O país tinha a maior taxa de infecção por HIV na Europa Ocidental devido ao compartilhamento de seringas para injetar drogas.
Até 1991, governo respondia usuários com repressão policial e tratamentos focados apenas na abstinência. As principais concentrações de usuários eram na praça Platzspitz, em Zurique, e em uma estação ferroviária abandonada em Letten.
Política de repressão abriu espaço para política de quatro pilares: ações policiais, prevenções, redução de danos e tratamento mais humano para os usuários de droga. Nas operações, os dependentes recebiam ofertas de tratamento. Naquele momento, o governo também passou a considerar "inaceitável" que qualquer pessoa morasse na rua e ampliou seu sistema de abrigos.
Um dos pontos mais controversos da política ficou conhecido como "tratamento assistido com heroína". Ele consistia em oferecer aos dependentes heroína pura sob prescrição médica, a ser injetada com segurança em clínicas especializadas. Dessa forma, eles parariam de comprar drogas contaminadas no mercado clandestino.
Primeira clínica do tipo foi inaugurada na Suíça em 1994, mas foi recebida com críticas pela oposição. Entretanto, entre 1991 e 2010, o número de overdoses fatais no país caiu pela metade. Ao mesmo tempo, as infecções por HIV foram reduzidas em 65% e a quantidade de novos usuários de heroína caiu 80%. Em 2008, 68% da população suíça votou em um referendo a favor da incorporação da política sobre drogas na lei federal.
Já em São Paulo e em Nova York, o crack é a principal droga consumida ao ar livre. Com isso, o tratamento de substituição já usado em outros países não é uma opção, já só atende a dependentes de opiáceos, como a heroína. Na Holanda, estão sendo feitos os primeiros experimentos para a substituição da cocaína - produto principal do crack.
As abordagens no tratamento do crack são um pouco diferentes, mas os princípios centrais para lidar com as cenas abertas são muito parecidos: os usuários tendem a ser privados de muitas coisas e, a menos que sejam atendidos por serviços e em espaços direcionados, o policiamento por si só não resolverá o problema, apenas fará com que eles mudem de lugar.
Thomas Clausen
NY abriu duas salas para uso de droga em 2021. Funcionários contaram ao New York Times que, em nove meses, intervieram em mais de mil overdoses, sem nenhuma morte. Ao anunciar a nova política, o prefeito Bill de Blasio defendeu uma "abordagem mais inteligente após décadas de fracasso".
O que propõe Suplicy para São Paulo
Proposta é atender a população vulnerável que consome, principalmente, cocaína e crack nas ruas de São Paulo. Um dos objetivos é que os usuários tenham um local seguro e higienizado para lidar com o vício, além de estímulo para reduzirem o uso de drogas. Tudo será supervisionado por profissionais de saúde treinados em redução de danos, que devem incentivar a busca por tratamento.
Segundo o projeto, os usuários passarão por uma triagem e orientação sobre práticas seguras e dosagem antes de entrarem nas salas. A experiência internacional mostra que não houve aumento no consumo de drogas ou taxa de iniciação do uso de drogas na população local após a criação das salas.
Espaço deve ser um local de convivência e oferecer serviços e atividades, além das salas para uso de drogas. "Muitas vezes o uso compulsivo de drogas acontece porque o usuário na rua não tem outras coisas para fazer", disse a psicóloga e redutora de danos, Maria Angélica Comis, que colaborou com o texto do PL. Ela diz que a oferta de banheiros com chuveiro, lavanderia e acesso à água também deve incentivar usuários a procurarem o espaço.
As drogas não serão oferecidas no local. Não há evidências de que as salas seguras diminuam o tráfico de drogas, e pesquisadores avaliam que o impacto é limitado já que os usuários continuariam a comprar droga de forma ilegal. O projeto do deputado Suplicy prevê apenas a redução de consumo de drogas ao ar livre, o que pode aumentar a sensação de segurança na região.
Pesquisadores alertam que usuários e funcionários das salas seguras podem ser alvos de ações legais. A Lei das Drogas prevê pena de um a três anos para quem "induzir, instigar ou auxiliar ao uso indevido de droga" enquanto o artigo 34 fala da proibição em distribuir e fornecer maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à preparação da droga. Os usuários também poderiam ser presos e processados por estarem levando drogas.
Nos países que introduziram as salas de consumo de droga como política pública a compra de drogas é proibida por lei. Na Dinamarca, Suécia e Luxemburgo, por exemplo, a posse para uso pessoal de drogas como cocaína e heroína é crime e pode ser punida com prisão. Nem por isso as barreiras legais impediram que novas políticas de redução de danos fossem experimentadas e adotadas como políticas de Estado.
Trecho do estudo Salas de Consumo de Drogas: situando o debate no Brasil por Rafael Tobias de Freitas Alloni e Luiz Guilherme Mendes de Paiva
PL também diz que os espaços serão monitorados por pesquisadores para avaliar anualmente o impacto da política. O projeto considera a possibilidade de instalar as salas seguras em prédios já existentes, como Caps (Centros de Atenção Psicossocial) e UBSs (Unidades Básicas de Saúde). O estudo orçamentário estima um custo anual de R$ 1,27 milhão para cada unidade e uma equipe de 15 profissionais, incluindo coordenadores, supervisores clínicos, advogados e redutores de danos.
Expectativa é que usuários optem pelo tratamento ou reduzam o consumo de drogas. Em 2016, uma pesquisa mostrou que dois em cada três usuários reduziram o consumo de crack após o programa Braços Abertos, do então prefeito Fernando Haddad (PT). Os dados são da Plataforma Brasileira de Política de Droga, que entrevistou 80 usuários. O projeto, que também era focado na redução de danos, oferecia emprego e moradia para os dependentes.
Projeto está em análise na Comissão de Constituição e Justiça da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo). Após a etapa de avaliação, o texto poderá ser votado por todos os deputados no Plenário.
Prefeito criticou projeto de lei. Em vídeo publicado nas redes sociais, Ricardo Nunes (MDB) acusou Suplicy de fazer "apologia" e apoiar o uso de drogas. O deputado rebateu dizendo que o combate às drogas "não comporta leituras simplistas, emotivas e imediatistas".
Gestão Nunes foi alvo de uma ação no STF após construir muro para delimitar área de usuários de droga. Em um documento, Nunes defendeu o muro na rua dos Protestantes, no centro, dizendo que ele protege usuários de "acidentes, especialmente atropelamentos".
Antropóloga diz que atual política de São Paulo espalha os usuários pela cidade. "Não há dúvida de que a população em situação de rua aumentou. As condições de vida da população, como um todo, piorou. Isso leva muitas pessoas para a rua e essa política de violentar pessoas que já foram tão violentadas ao longo da vida não as ajuda", afirmou Roberta Costa, integrante da Craco Resiste.
Com informações de Deutsche Welle e reportagem publicada em 13/06/2022