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Estado Islâmico conquista perigosos avanços na Líbia

Vídeo com execução de cristãos egípcios provocou reflexão na Líbia - Reprodução/YouTube
Vídeo com execução de cristãos egípcios provocou reflexão na Líbia Imagem: Reprodução/YouTube

Mirco Keilberth e Christoph Reuter

25/02/2015 06h00

Milícias rivais na Líbia lançaram o país em uma guerra civil e o tornaram uma presa fácil para o Estado Islâmico. A recente execução de 21 cristãos egípcios é apenas um sinal da crescente presença do grupo terrorista no norte da África.

Os homens sentados no Café L’Aurora, em Trípoli, olham silenciosamente para o smartphone que Najib Ali está segurando. Eles estão assistindo a um vídeo horroroso que mostra a decapitação de 21 cristãos egípcios, provavelmente na praia em Sirte. As vítimas estão vestindo macacão laranja, enquanto seus assassinos do Estado Islâmico (EI) estão cobertos de preto. Os homens do café já assistiram ao vídeo inúmeras vezes e ainda assim continuam a vê-lo, procurando detalhes que possam indicar que os atos terríveis de fato não aconteceram.

“Você já viu um líbio tão alto?”, pergunta um deles. E o trabalho de câmera profissional? “Tem que haver um grande poder por trás disso”. E como poderia Sirte, a cidade natal do ex-ditador Muammar Gaddafi, de repente, estar sob o domínio do Estado Islâmico? A divulgação do vídeo no domingo, 15 de fevereiro, pouco antes do quarto aniversário da insurgência contra Gaddafi, levou muitos líbios a reagirem reflexivamente, com negações desesperadas da realidade.

A verdade é que a Líbia está bem a caminho de se tornar um Estado falido – e uma presa perfeita para o EI. Além disso, a Líbia fica perto da Itália, tem abundância de petróleo e oferece um possível corredor para o Boko Haram na Nigéria, bem como para os islâmicos no Mali e no Saara. Na verdade, se o EI conseguir solidificar sua presença no país, os terroristas poderão representar uma ameaça para o Sul da Europa, além de desestabilizar todo o norte da África.

O local das execuções parece ser uma praia localizada perto do Hotel Mahari, no centro de Sirte. Os presos estavam detidos no hotel, que aparentemente abriga uma série de jihadistas estrangeiros. Várias câmeras foram usadas para produzir o vídeo de maneira profissional. Na verdade, é muito possível que propagandistas do EI com experiência técnica e formação na Síria ou no Iraque produziram o vídeo de Sirte.

Uma demonstraçao de força para os líbios

Tampouco é coincidência o fato das execuções terem ocorrido em Sirte. A cidade é o novo centro de poder do Estado Islâmico na Líbia. Pouco tempo atrás, os terroristas assumiram redes de televisão e de rádio, que desde então tocam músicas jihadistas e discursos proferidos pelo porta-voz EI Abu Mohammed al-Adnani. Além disso, os escritórios do governo foram ocupados; os terminais de petróleo, atacados; e trabalhadores estrangeiros, decapitados. Recentemente, membros do governo foram até mesmo obrigados a pedir desculpas publicamente por terem trabalhado para o Estado líbio. Ninguém ousa criticar os novos governantes, e uma testemunha relatou que muitos ficam felizes simplesmente por ainda estarem vivos. “O massacre é uma advertência para a Europa, mas também uma demonstração de força para nós, líbios”.

No outono passado, o grupo terrorista líbio Conselho Shura da Juventude Islâmica, em Derna, uniu forças com o EI, mas a cidade portuária está cercada por tropas do governo, o que limita o movimento do grupo. Os terroristas em Sirte, por outro lado, são livres para se mover para o Oeste e para o Saara. Eles também ganharam adeptos em Benghazi e Trípoli. Enquanto isso, membros de milícias islamitas também estão ingressando no EI. De fato, a Líbia tornou-se a mais importante colônia do califado no norte da África, depois do Egito. Combatentes de todo o mundo são treinados no país; alguns são empregados localmente, e outros são enviados para a Síria ou para o Iraque.

O massacre dos cristãos poderá dar ao país um impulso final para uma guerra civil aberta, na qual todo mundo luta contra todo mundo: as milícias inimigas, seus partidários estrangeiros e os jihadistas. Mas a dissolução da Líbia começou muito antes. Nas eleições parlamentares do verão passado, os partidos islâmicos associados com as milícias em Misrata, uma importante cidade comercial, tiveram um resultado muito fraco e não quiseram aceitar a derrota. Sob a liderança do Amanhecer da Líbia, as milícias capturaram a capital de Trípoli. Elas depuseram o parlamento recém-eleito e reconhecido internacionalmente e restabeleceram alguns membros do parlamento anterior, levando os representantes eleitos a fugirem para Tobruk.
 

"O EI vinha esperando este tipo de caos"

Desde aquele momento, o país passou a ter efetivamente dois parlamentos, dois governos e dois exércitos. Ambos os lados vêm lutando entre si desde o outono passado, atacando aeroportos, cidades e terminais de petróleo. Do lado do governo oficial da Líbia, o general Khalifa Haftar está travando uma guerra contra os islamitas, com apoio militar do Egito e dos Emirados Árabes Unidos. Do outro lado, a aliança do Amanhecer Islâmico é apoiada pela Turquia e Qatar.

A luta sangrenta pelo poder está levando o colapso da Líbia. A produção de petróleo caiu drasticamente, de mais de 1,6 milhões de barris por dia para menos de 500 mil. A receita ainda é suficiente para cobrir os salários dos funcionários públicos e para subsidiar a gasolina, mas não há o suficiente para manter os hospitais ou cobrir os reparos necessários na infraestrutura.

“Os estrategistas do EI estavam esperando precisamente este tipo de caos há algum tempo”, diz o especialista em segurança da Líbia Mohamed Garbi. Ele diz que o conflito enfraqueceu o Estado a tal ponto que ficou fácil capturá-lo. O EI, de sua parte, quer que essa vulnerabilidade perdure. No vídeo, um dos militantes está com uma faca na mão e diz: “Vamos conquistar Roma, pela vontade de Alá”. Mas é mais provável que o massacre cristão fosse endereçado às negociações de paz em Genebra, onde os delegados da maioria das facções na Líbia conseguiram negociar um cessar-fogo em janeiro, nas discussões intermediadas pelo enviado especial da ONU, Bernardino Léon. Parece que as decapitações representam um esforço por parte do Estado Islâmico para desmantelar esse sucesso.

Caso volte a irromper um conflito intenso na Líbia, os jihadistas se beneficiariam da luta pelo poder mudando de lado constantemente. A estratégia funcionou bem na Síria, onde permitiu que passassem a perna militarmente em grupos rebeldes mais fortes, como a Frente Nusra. Afinal, o EI tinha uma vantagem que os outros não tinham: unidade.

Um país à deriva

Essa unidade está faltando na sociedade da Líbia, dividida após a vitória sobre Gaddafi. Uma das falhas iniciais do governo após a revolução foi ter tentado reintegrar os combatentes na vida civil pagando-lhes bons salários, mas sem fornecer-lhes perspectivas de formação ou de emprego. Ao fazer isso, involuntariamente ofereceu apoio às milícias. Logo após a queda de Gaddafi, a Comissão de Interesses dos Combatentes da Líbia contabilizou cerca de 60 mil revolucionários; um ano depois, esse número já era de 200 mil. Eram 500 milícias. Com a desconfiança que tinham em relação ao novo governo, elas não largaram as armas. Em vez disso, passaram a caçar elas mesmas os criminosos, ou assumiram atividades ilícitas. Por dois anos, as milícias dominaram o país, extorquindo o Parlamento e até mesmo expulsando um primeiro-ministro do país.

Alguns dias depois do modesto sucesso alcançado em Genebra, uma unidade do EI invadiu o Hotel Corinthia em Trípoli, onde as empresas estrangeiras e o governo ilegítimo tinham se estabelecido. O ataque, que tomou nove vidas, gerou ainda mais desconfiança entre as partes envolvidas no conflito. Em Trípoli, muitos acreditam que o governo no leste estava por trás do ataque. E agora vem o vídeo, uma composição de horror precisamente calculada na qual até o oceano é vermelho cor de sangue para aumentar o efeito.

Arrastar o Egito para o conflito

Após a divulgação do vídeo, a força aérea egípcia realizou ataques aéreos contra posições jihadistas. Seis das 12 bases do EI em Derna teriam sido atingidas. É o tipo de resposta que o Estado Islâmico talvez até desejasse, na esperança de arrastar o Egito para a guerra civil e ainda aquecer a luta entre as facções.

Uma intervenção militar na Líbia pode ter repercussões desastrosas no Egito. As políticas do presidente Abdel Fattah el-Sisi, que vem taxando praticamente todos os adversários de terroristas, já estão forçando a oposição para o subterrâneo - possivelmente até mesmo para as mãos do Estado Islâmico. Enquanto isso, o fato de que o EI em Sirte soltou trabalhadores estrangeiros sunitas sequestrados e escolheu matar apenas cristãos poderia agravar ainda mais o conflito entre grupos religiosos egípcios. Mas há outros fatores em jogo, como os 200 mil trabalhadores egípcios que ainda estariam na Líbia e cujo regresso poderia desencadear tensões internas ou o fato de acreditar-se que há outros egípcios sequestrados.

O Estado Islâmico já está expandindo seu alcance para o Sul. Na cidade de Sabha, uma primeira reunião teve lugar na semana retrasada entre comandantes de diversas milícias islâmicas para discutir a possível criação da Província Fezzan do Estado Islâmico. Se isso acontecer, colocará nas mãos do EI as rotas de contrabando para refugiados, armas e drogas e criará um corredor para os grupos islâmicos ao Sul da Líbia.

Diz-se que o grupo é financiado por Abdul Wahhab al-Gayed, ex-parlamentar da Líbia. Como chefe da Guarda de Fronteiras, ele recebeu cerca de 250 milhões de euros (aproximadamente R$ 800 milhões) do governo em meados de 2013. No entanto, o dinheiro nunca chegou ao destino. Acredita-se que Al-Gayed usou-o para adquirir armas para a sua milícia, que agora estaria prestes a unir forças com o EI.

Os islamistas nas regiões costeiras também se armaram. “Há milhares de fuzis Kalashnikov, lança-granadas e toneladas de munições prontas para o uso em Derna e Sirte”, diz um antigo ativista anti-Gaddafi, que é bem relacionado na região. A fonte diz que os extremistas obtiveram o dinheiro para as compras sequestrando empresários.

Houve outros esforços criminosos para arrecadar dinheiro. Em outubro de 2013, o grupo terrorista Ansar al-Sharia roubou uma van com dinheiro do banco central em Sirte, que estaria transportando 39 milhões de euros. Agora, parece que o Ansa al-Sharia está se fundindo com o EI. Na noite da última quarta-feira, moradores de Sirte assistiram a uma longa carreata do Estado Islâmico na cidade. “Ninguém sabe de onde vieram subitamente tantos combatentes e armas”, diz um jornalista que mora em Misrata e pediu para não ser identificado. Ele teme que sua cidade natal possa se tornar o próximo alvo dos terroristas.

Se isso acontecer, o EI estará realizando o anúncio que fez em dezembro de que iria estabelecer três províncias na Líbia: uma no leste, outra no oeste e um reduto no sul.

Tradutora: Deborah Weinberg

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