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Opinião: Decisão de permitir 'bebês de três pais' é ética e abraça o futuro

Técnica permite que núcleo saudável de óvulo com mitocôndria danificada seja usado - Alamy
Técnica permite que núcleo saudável de óvulo com mitocôndria danificada seja usado Imagem: Alamy

Kenan Malik

Em Londres

01/03/2015 06h00

O Parlamento britânico pode ser uma instituição arcaica e de aparência atrasada, ligada à tradição, que não é conhecida por ter uma postura revolucionária. Apesar disso, seus membros acabaram de tomar uma decisão inovadora, uma que nenhuma legislatura até agora se dispôs a contemplar.

Eles aprovaram uma lei que torna o Reino Unido o primeiro país a permitir a criação do que muitos têm chamado de "bebês de três pais". Os simpatizantes dizem que o procedimento permitirá que as mulheres evitem passar para os filhos certas doenças genéticas hereditárias graves e até mesmo fatais. Mas muitos consideraram a nova lei uma medida equivocada, até mesmo imoral – o primeiro passo na direção da criação de "bebês projetados". Alguns até a veem como um novo experimento de eugenia.

"Bebês de três pais" é um termo sensacionalista para descrever uma forma especial de fertilização in vitro (ou IVF), chamada mais apropriadamente de "transferência mitocondrial".

Cada célula humana é composta de duas partes principais: o núcleo e o citoplasma. O núcleo contém o DNA, o código genético que ajuda a moldar os traços herdados. O citoplasma é a oficina da célula, onde a maior parte das funções cotidianas ocorrem. Entre as partes que o constituem está a mitocôndria, minúsculas organelas (unidades parecidas com órgãos dentro de uma célula) cujo trabalho é fornecer energia. Cada mitocôndria contém quantidades minúsculas de seu próprio DNA, cerca de 37 genes em comparação com os mais ou menos 20 mil do núcleo.

O DNA mitocondrial não tem nenhum papel em determinar os traços herdados de um indivíduo, como aqueles que moldam a aparência ou os talentos. Mas se ele funcionar mal, pode causar condições terríveis como fraqueza muscular, convulsões, cegueira, surdez, falência de órgãos e até a morte. Há mais de 50 doenças mitocondriais, afetando pelo menos uma em cada 8 mil crianças (alguns sugerem que o número é muito mais alto). Atualmente não há cura para elas.

Em uma transferência mitocondrial, o núcleo saudável de um óvulo com mitocôndria danificada é transferido para o corpo de um óvulo de um doador saudável do qual o núcleo foi removido. Quando este óvulo é fertilizado, ele terá seu complemento normal de genes da mãe e do pai, junto com uma quantidade minúscula de DNA mitocondrial do óvulo da terceira pessoa saudável para o qual o núcleo foi transferido. (A lei também permite uma técnica alternativa e mais cara, na qual ambos os óvulos são primeiro fertilizados in vitro, e depois o núcleo do óvulo com mitocôndria defeituosa é transferido para o óvulo da doadora saudável, do qual o núcleo foi removido.)

Daí a noção de "bebê de três pais" - apesar do termo equivocado. Nenhuma característica da criança importante social ou eticamente virá do "terceiro pai".

O que faz com que você seja "você" depende bem mais do que dos seus genes, mas no que diz respeito ao papel que os genes desempenham na personalidade, no talento ou atributos físicos, tudo isso vem do núcleo. No caso da transferência mitocondrial, esses genes virão, não da mulher que doou o óvulo com a mitocôndria funcionando, mas do núcleo da mulher com a mitocôndria com problemas e do esperma do seu parceiro. Esses dois últimos são verdadeiramente os únicos pais da criança.

A melhor analogia para a transferência mitocondrial é a de um transplante de órgão. Transplantar a mitocôndria saudável é bem pouco diferente de transplantar um rim saudável ou um coração em uma pessoa com um órgão doente – e não deveria ser mais problemático em termos éticos. Se o termo "bebê de três pais" não descreve a realidade do processo, levanta sim a ideia de cientistas que "brincam de Deus" e da defesa de métodos supostamente não naturais.

A crença de que cientistas ou médicos não devem brincar de Deus sempre me pareceu estranha. Brincar de Deus – no sentido de interferir no curso natural dos acontecimentos para melhorar as vidas humanas – é exatamente o que os médicos devem fazer. Quer seja transplantar corações que falham naturalmente, ou fazer uma cesariana quando um parto natural pode ser perigoso, a própria essência da medicina é consertar os erros da natureza.

Menos convincente ainda é o argumento de que o processo cria "bebês projetados". Um bebê projetado é um cujos genes foram alterados para mudar, ou melhorar, certas características. Hoje, podemos escanear in vitro os embriões em busca de alguns defeitos genéticos ou características como o sexo. Mas estamos muito longe do tipo de modificação genética implícita na ideia de bebês projetados.

Quaisquer que sejam os argumentos morais sobre o desejo ou não dessas modificações, eles são irrelevantes para a questão da transferência mitocondrial. Não há interferência ou engenharia genética.

É verdade que o DNA mitocondrial da doadora será passado (se a criança for uma menina) para a próxima geração. Isso deve fazer com que tenhamos cautela para garantir que nenhum problema seja passado por gerações através do processo. Mas isso não torna o processo inerentemente problemático de um ponto de vista ético.

Imagine uma situação em que uma mulher com anormalidades mitocondriais concebe de forma natural, e não através de transferência mitocondrial. Nesse caso, também, o DNA mitocondrial será passado para a próxima geração. A única diferença é que as futuras gerações herdarão um DNA com problema em vez de um DNA saudável. Por que deveria ser ético passar um DNA com problemas, e antiético oferecer um DNA saudável?

Os oponentes colocam o debate como um entre a ciência amoral e aqueles que buscam colocar o avanço científico dentro de uma estrutura moral. Mas onde está a moralidade em causar um sofrimento desnecessário evitando o avanço médico?

Desta vez, o Parlamento britânico abraçou o futuro e tomou a decisão ética.

(Kenan Malik é escritor, palestrante e apresentador. É autor do recente "The Quest for a Moral Compass: A Global History of Ethics" ("A Busca por uma Bússola Moral: Uma História Global da Ética", em tradução livre)

Tradutora: Eloise De Vylder