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Na esperança de cruzar o Mediterrâneo, migrantes devem primeiro cruzar a Líbia sem lei

David D. Kirkpatrick

Em Zawiyah (Líbia)

28/04/2015 06h00

Os dois meninos eritreus de 8 anos percorreram por dias os desertos da Etiópia, Sudão e Líbia na traseira de um caminhão com duas outras crianças e uma dúzia de adultos. Então eles passaram outro mês presos em uma casa de fazenda lotada, que os contrabandistas usavam como curral para armazenar sua carga humana.

Finalmente, na calada da noite, uma balsa de borracha levou os dois meninos, Hermon Angosom e Efrem Fitwi, até um barco de pesca rangente lotado com mais de 200 outras pessoas, incluindo 39 crianças –a mais nova um menino de apenas 2 anos nos braços de sua mãe.

Ambos choravam. "Nós estávamos com medo do barco", Hermon contou impassivelmente.

Os meninos se juntaram ao fluxo incessante de emigrantes árabes e africanos que lidam com a falta de lei da Líbia pós-Gaddafi para se lançarem ao Mediterrâneo –mais de 170 mil no ano passado e no mínimo o mesmo número esperado neste ano.

É uma jornada por um Estado fracassado no qual segurança na fronteira é praticamente inexistente, a corrupção é desenfreada, a guarda costeira raramente deixa o porto e com uma proliferação de operações de contrabando humano que estão se tornando cada vez mais insensíveis e descaradas. O tráfico humano a partir da Líbia pelo Mediterrâneo foi um negócio de US$ 170 milhões no ano passado, segundo estimativas conservadoras em um recente relatório da ONU.

Desde a derrubada de Muammar Gaddafi em 2011, as milícias em guerra se tornaram a única lei em grande parte da Líbia. Os contrabandistas "não têm nada a temer", como um colocou, porque a segurança ao longo da costa desapareceu. E as histórias que se multiplicam de mortes ao mar não fizeram nada para diminuir a demanda pela travessia.

Os imigrantes africanos que vieram à procura de trabalho braçal estão cada vez mais desesperados para partir, devido aos confrontos mortais entre as milícias líbias, o quase colapso da economia e a rotina de assaltos e abusos sofridos pelos africanos de pele escura por parte dos milicianos líbios.

Outros de outras partes da África pagam aos contrabandistas do deserto para os levarem até a costa Líbia apenas pela chance de chegarem à Europa e às vidas melhores que imaginam que terão ali.

A maioria é transportada às cegas pela Líbia por gangues armadas sob a proteção de milícias poderosas. Alguns não conseguem chegar às águas líbias e acabam presos em um limbo infernal, incapazes de voltar para casa e atolados no caos do país. Muitos não têm tanta sorte.
 

Afogamentos

Aproximadamente 1.700 dos cerca de 25 mil migrantes tentando cruzar da Líbia para a Itália se afogaram nas primeiras semanas da temporada de navegação de primavera, segundo a Organização Internacional de Migração, uma organização intergovernamental em Genebra. Isso inclui mais de 700 em uma embarcação que virou há cerca de uma semana. O número de mortos é mais de três vezes superior ao do ano passado, quando cerca de 3.200 se afogaram dentre aproximadamente 170 mil que tentaram a mesma travessia.

Mas muitos ainda pagam pela chance, disseram dois contrabandistas em entrevistas separadas.

"Os africanos estão vendo a morte diante de seus olhos" devido ao abuso e violência das milícias líbias, disse um contrabandista, bebendo um cappuccino em um café ao lado do porto em Trípoli, a capital, e falando sob a condição de anonimato porque o que faz é crime.

"Mesmo se houver uma chance de 99% de morrerem no mar, eles ainda assim arriscam", ele disse, "simplesmente por estarem cheios".

Os contrabandistas estão cada vez mais cínicos a respeito de sua carga humana.

"A maioria dos contrabandistas não se importa com Deus", disse o contrabandista, "apenas querem socar o maior número de migrantes dentro do barco –quanto mais, melhor".

Ele insistiu que nunca perdeu um passageiro, mas sua avaliação dos riscos pareceu ir contra o número de mortos. "É de conhecimento que as embarcações italianas salvam todos", ele disse.

Contrabandistas e migrantes disseram que um resgate por uma embarcação europeia em águas internacionais –sem chegar à costa italiana– é a meta de cada partida. Eles disseram que o crescente número de patrulhas, como a União Europeia prometeu fazer, tem pouca chance de conter o fluxo.

"Uma força no mar apenas salvará os migrantes", disse um contrabandista. "O problema está nos portos da Líbia."

Mas a guarda costeira líbia é praticamente inútil. Os oficiais da guarda costeira responsáveis por grande parte da costa onde o contrabando ocorre dizem que falhas de equipamento os impediram de realizar uma operação por mais de três meses, e pelo menos um capitão disse ter medo de retaliação pelos contrabandistas.

Na distância mais curta, o extremo oeste da costa da Líbia fica a apenas 466 quilômetros da ilha italiana de Lampedusa, e a migração pelo mar é um sonho há anos. Mas sob o governo de Gaddafi, disseram os dois contrabandistas, o preço da passagem para um emigrante chegava até a US$ 5 mil, devido ao custo de evitar –ou mais provavelmente subornar– as forças de segurança.

Nas últimas semanas o preço caiu para US$ 1.600, segundo contrabandistas e migrantes por toda Trípoli. Os africanos de pele escura viajam por menos que marroquinos, sírios e tunisianos de pele mais clara, porque supostamente estes têm mais dinheiro.

Lotar um barco com 200 ou mais migrantes a US$ 1.600 por cabeça significa mais de US$ 320 mil, mas os contrabandistas insistem que as despesas são altas, principalmente para subornar as milícias.

"Tudo é caro", disse um contrabandista.
 

Propinas

O transporte dos migrantes por estradas exige o pagamento de mais de US$ 100 em cada posto de controle local das milícias por cada caminhão transportando 15 a 20 migrantes. (Alguns de outros países disseram que pagaram até US$ 1.600 apenas pela viagem do Sudão até a costa da Líbia em Ajdabiya, e depois para oeste até os portos de contrabando.)

Um contrabandista pode pagar até US$ 5 mil por mês pelo aluguel de uma casa onde pode manter os migrantes até poderem partir, pagando um adicional ao senhorio devido ao risco de retaliação caso seu uso seja exposto. Os contrabandistas também precisam pagar aos guardas.

E geralmente custa até US$ 20 mil por mês para pagar o chefe da milícia local pela permissão de uso de um ponto de partida seguro –"se ele for poderoso", disse o contrabandista.

Um bote de borracha para transporte de grupos de 20 migrantes até uma embarcação à espera pode custar US$ 4 mil, e uma embarcação capaz de receber 250 migrantes para uma viagem só de ida pode chegar a US$ 80 mil. (Os fabricantes de barcos cobram um adicional dos contrabandistas, eles se queixam.)

Um capitão egípcio ou tunisiano para a embarcação pode receber de US$ 5 mil a US$ 7 mil, e se misturar com os migrantes para evitar responsabilidade caso o barco seja abordado pelas autoridades, segundo os contrabandistas. Cerca de US$ 800 compram um telefone por satélite que o capitão pode usar para ligar para a Cruz Vermelha quando a embarcação chega a águas internacionais, para acelerar que sejam recolhidos pela guarda costeira italiana.

Os migrantes pegos em águas líbias são enviados para uma rede de centros de detenção primitivos. A maioria dos detidos nos centros é de africanos de pele escura, que foram entregues pelos milicianos líbios agindo como policiais. Os líbios os acusam de entrar ilegalmente no país ou de cometerem um crime.

Mas os migrantes dizem que líbios armados os param nos postos de controle ou invadem os apartamentos lotados que compartilham para roubar suas economias e então entregá-los. Muitos acusam os líbios de estuprarem as mulheres migrantes, mas não há tribunais para julgar essas acusações.

Em um centro de detenção na área de Abu Salim de Trípoli, dezenas de migrantes capturados no mar estavam entre os cerca de 300 homens abrigados em dois bunkers de concreto mal iluminados de 45 X 9 metros fedendo a urina e suor. Os colchonetes nos quais dormiam cobriam cada centímetro do chão e estavam infestados de percevejos. Cada ambiente tinha dois toaletes no canto, e um lavatório de cimento coberto de lixo com quatro torneiras era o único meio de lavarem suas roupas e se lavarem.

Alguns disseram que passaram dois meses ou mais aqui ou em centros semelhantes, apesar de às vezes serem contratados como diaristas e trazidos de volta à noite.

"Somos como escravos", disse Abu Bakr Dixon, 34 anos, um gambiano detido no centro de detenção de Zawiyah. Ele sobreviveu depois de sua embarcação virar ao se agarrar a um barril vazio com um amigo até serem resgatados. Pelo menos 61 outras pessoas que estavam com ele se afogaram.

O coronel Milud Jummah, o oficial encarregado do centro de Abu Salim, ordenou que os homens de um ambiente se ajoelhassem em fila no pátio –uma chance de tomarem um pouco de sol, ele disse. Fileiras de arame farpado bloqueavam grande parte do espaço ao ar livre e guardas armados proibiam os migrantes de circularem.

"Não espere que sejam humanos normais", disse Jummah, explicando as restrições pesadas.

No centro de detenção de Zawiyah, Hermon e Efrem pareciam sentir o mesmo. Os dois meninos disseram que fugiram sem dizer aos seus pais. Eles disseram que irmãos que fizeram a viagem de barco da Líbia à Itália conseguiram enviar dinheiro para os contrabandistas para que seus irmãos mais novos se juntassem a eles.

Nenhum dos cerca de três dúzias de meninos eritreus tinha ideia de como sairia do centro de detenção ou o que o futuro lhe reservava. Mas quando perguntados se queriam voltar para casa para seus pais, a resposta era unânime.

"Nós queremos ir para a Itália", disseram.