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Laís Souza: Uma vida em movimento, hoje congelada

Sarah Lyall

Em Park City, Utah (EUA)

14/05/2015 14h05

Era apenas o topo de uma montanha, mas para Laís Souza, que iniciava uma descida de tirar o fôlego conhecida como Double Jack, parecia o lugar mais excitante do mundo.

Aos 25 anos, Laís era uma das melhores ginastas do Brasil, uma pequena atleta que havia disputado duas Olimpíadas e acabara de ouvir notícias animadoras: havia se classificado para mais uma Olimpíada. Mas estes eram os Jogos de Inverno de 2014, algo completamente novo. Em menos de uma semana, Laís viajaria para Sochi, na Rússia, para competir no esqui aéreo, esporte do qual nunca tinha ouvido falar antes de adotá-lo, sete meses antes.

O humor de Laís estava efervescente quando ela olhou para a encosta branca naquele dia, 28 de janeiro de 2014. Esquiando ao seu lado estavam seus constantes companheiros do último semestre: Ryan Snow, seu treinador canadense, e Josi Santos, 28, sua companheira de equipe e amiga.

As jovens não estavam treinando na rampa aérea, mas simplesmente esquiando morro abaixo. Seria a última descida dos três esquiadores em uma longa e alegre manhã, antes de pararem para o almoço e encerrarem o dia. Snow foi primeiro, depois Josi e depois Laís.

Mas algo não estava certo. A Double Jack estava salpicada de morrinhos chamados moguls, formados por neve dura. Eles podem ser enganosos, especialmente quando não se está habituado, como as brasileiras. O que aconteceu então foi rápido. Snow e Josi não viram, por isso não sabem os detalhes. Para Laís, a memória se despedaçou em fragmentos elusivos, estilhaços de momentos sem uma narrativa coerente.

Mas a história que ela vê em sua mente sempre termina do mesmo modo: está deitada na neve, impotente.

Só parava para dormir

Desde o tempo em que era menina em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, Laís Souza parecia destinada a uma vocação em que ela não teria de ficar parada. Era hiperativa, sempre subindo em alguma coisa ou dobrando o corpo em formas improváveis e metendo-o em lugares onde não deveria estar.

"Ela estava sempre se mexendo - correndo para lá e para cá, sempre ativa, incansável", disse sua mãe, Odete. "Só parava para dormir."

Quando tinha 5 anos, Laís encontrou um lugar onde podia canalizar toda a sua agitação. Seu irmão estava tendo aulas de judô no complexo esportivo municipal do outro lado da cidade, e quando ela foi levá-lo com seus pais ficou fascinada pelas ginastas que ali treinavam.

Ela seguiu para se tornar uma das ginastas mais bem-sucedidas de sua geração no Brasil, disputando sua primeira Olimpíada em 2004 em Atenas, Grécia, aos 15 anos - a mais jovem da equipe.

Quando Laís chegou aos 20, seu corpo começou a sofrer. Ela passou por diversas operações, incluindo oito no joelho direito.

Então, do nada, surgiu um convite.

O plano do Brasil para o inverno

No universo dos esportes de inverno, a América do Sul é uma galáxia distante.

"Se você pegar uma revista de esportes no Brasil, vai ler sobre futebol em 95% ou 97% das páginas", diz Pedro Cavazzoni, diretor técnico da Confederação Brasileira de Desportos na Neve, sediada em São Paulo. "Então, exceto pelo futebol, não há muitos esportes bem conhecidos."

Isso mudou com a chegada de Ryan Snow, um canadense simpático com uma proposta audaciosa.

Snow apresentou um plano detalhado para transformar ginastas sem experiência em esqui em saltadoras para competições internacionais. O plano pareceu sensato para as autoridades esportivas brasileiras.

Foram enviados convites para programas de ginástica em todo o país. Apenas quatro mulheres apareceram.

Entre elas estava Laís - ainda buscando sua próxima paixão, ávida para ver de que era capaz - e Josi Santos. As duas se conheciam do circuito de ginástica brasileiro, onde haviam convivido por um breve período.

Snow disse que logo descobriu que suas novas esquiadoras topavam tudo, entusiasmadas pela sorte de encontrar uma segunda chance nos esportes.

A última descida

Nenhum dos três - Laís, Josi e Snow - que estavam lá na montanha na manhã de 28 de janeiro de 2014 tem certeza do que aconteceu. Mesmo as coisas de que eles se lembram tendem a ser um tanto diferentes.

Laís lembra que estava preocupada com a descida e tentou advertir Josi para ir mais devagar.

Ela passou por Josi e esquiou para longe. Nem Josi nem Snow podiam vê-la.

Josi não ouviu mais nada. Mas Snow, que esperava embaixo, ouviu um estranho grito que se perdeu na distância.

Ele encontrou Laís deitada na neve, de costas, em um ângulo estranho. Ela estava inconsciente. Sua respiração não estava certa, era quase como se estivesse roncando. Seus esquis estavam espalhados.

Quando Laís chegou ao hospital da Universidade de Utah, estava quase morta. O acidente havia quebrado seu pescoço e causado um deslocamento próximo do topo de sua coluna.

O deslocamento havia empurrado as vértebras para dentro da coluna e esmagado a parte dela que estimula o diafragma, o músculo mais responsável pela respiração. Isso deixou Laís incapaz de respirar sem ajuda.

Ela sofreu uma operação de oitohoras para realinhar suas vértebras e estabilizar o pescoço, mas não podia fazer nada sozinha: ela recebeu uma sonda de alimentação, sofreu uma traqueostomia e foi ligada a uma máquina de respirar.

Uma semana depois do acidente, Laís ficou suficientemente estável para ser transferida para o Hospital Jackson Memorial em Miami, onde esteve sob os cuidados do chefe de neurocirurgia, doutor Barth Green.

Sua condição ainda era altamente delicada. Mas ele e o doutor Antônio Mattos, um cirurgião especializado em traumas no Jackson Memorial que por acaso também é o médico da equipe olímpica brasileira, ficaram surpresos com a resistência de Laís. Contrariando suas previsões, ela foi retirada da sonda de alimentação e da máquina de respirar.

"Eu tenho 60 e muitos anos, e se sofrer o mesmo ferimento tenho 90% de probabilidade de morrer", diz Green. "O coração dela, os pulmões e os músculos, sua tenacidade, seu metabolismo e sistema imunológico - tudo isso estava sintonizado para fazer dela uma atleta de nível internacional."

Um lugar vago

De volta a Utah, enquanto Laís ainda estava sendo tratada, Josi acabara de saber que afinal havia surgido uma vaga para ela em Sochi. Parecia uma virada imprevista do destino.

Tudo o que Josi pôde fazer foi chorar. A oportunidade parecia perdida. "Eu não tinha condições de fazer nada", conta ela.

O que finalmente a fez mudar de ideia foi Laís. Da cama do hospital, ela convenceu Josi de que devia ir a Sochi. "Vá e faça isso por nós", disse ela.

Afinal Josi foi a Sochi, abalada mas decidida. Ficou em 22º lugar entre as 22 saltadoras. Mas fez um pouso perfeito em seu salto. Foi um momento emocionante e sua mente estava dividida, metade em Sochi, metade em Miami, onde sua amiga estava hospitalizada.

No final da descida, ela levantou a mão em triunfo, formando com o polegar e o indicador um "L" de Laís.

Pequenas esperanças

Na última primavera, pesquisadores da Universidade de Miami receberam uma autorização especial da Administração de Alimentos e Drogas (FDA) dos EUA para participar de um teste de um novo tipo de tratamento, em que células-tronco de doadores e depois de Laís foram injetadas na coluna vertebral no local da lesão.

O tratamento despertou uma pequena sensação em seus braços e pés. Laís hoje consegue sentir, por exemplo, uma pressão em sua pele, um elemento importante que ajuda a evitar ferimentos.

Nada disso garante um retorno do movimento útil em seus braços ou pernas, mas é suficiente para Laís.

"Ela nunca piscou um olho e disse 'por que eu?' ou 'estou deprimida' ou 'tenho pena de mim mesma' ou 'quero me matar'", disse Green. "Não é raro ter essas reações depois de uma lesão tão catastrófica."

Sua resiliência vem de muitas coisas: religião, disciplina, a política de definir um objetivo para si própria.

Hoje com 26 anos e com a perspectiva de passar a vida em uma cadeira de rodas, Laís mostra-se fiel à descrição de Green. Ela nunca questionou sua decisão de deixar a ginástica e assumir o esqui aéreo.

"É muito difícil, mas estou calma", diz. "Sempre fui."

Mas se vê como a frustração pode explodir em uma pessoa que sempre estava se mexendo e hoje está sempre sentada, quieta.

"Às vezes eu paro e pergunto a mim mesma por quê, por que eu?", diz ela em certo momento.

Laís conta que quando sonha à noite nunca se vê esquiando. Ela sonha com ginástica.

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves