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Cenário de torturas e abusos na ditadura, comunidade chilena se reinventa para turistas

Tomas Munita/The New York Times
Imagem: Tomas Munita/The New York Times

Pascale Bonnefoy

Em Villa Baviera (Chile)

07/11/2015 06h00

Claudio Pacheco levou sua família recentemente a um passeio a Villa Baviera, uma comunidade rural pitoresca situada no sopé dos Andes. Eles comeram uma variedade de pratos alemães e ganharam um cervo vivo em uma rifa.

E como outros visitantes, eles passaram grande parte do dia perambulando pelos cerca de 14 mil hectares de florestas, terras agrícolas e colinas arredondadas –terras bem cuidadas, antes usadas para torturar, executar e enterrar presos políticos, acumular armas e aterrorizar uma comunidade.

Villa Baviera, antes lar de uma seita alemã altamente secreta cujo ex-líder foi condenado por abusar sexualmente de meninos e estava sob investigação de ter colaborado com o regime do general Augusto Pinochet, se reinventou como atração turística em uma tentativa de permanecer viva, após seu líder ter fugido do país e a colônia se ver em dificuldades financeiras.

A comunidade, que em seu auge nos anos 60 e 70 contava com cerca de 300 membros, transformou as antigas oficinas onde os devotos trabalhavam sem remuneração em um hotel. O refeitório comunal, um dos poucos lugares onde os pais na colônia podiam vislumbrar as crianças que foram tiradas deles, agora é um restaurante público. Ela celebra a Oktoberfest e uma pequena loja vende souvenirs, assim como massas e linguiças caseiras.

Um complexo turístico conta com um pequeno lago com pedalinhos, uma piscina, banheiras quentes e bicicletas para alugar. Os serviços incluem cerimônias de casamento e chamadas visitas históricas ao quarto do líder, onde ele abusava dos meninos, e ao hospital, onde os seguidores eram drogados e torturados.

Há muito existe interesse no Chile sobre o que acontecia sob as torres de vigilância de Villa Baviera enquanto o líder da seita, Paul Schaefer, governava a comunidade. Detalhes perturbadores sobre o que acontecia aqui vazam desde os anos 60 e continuam até hoje. Em outubro, um relatório confidencial de inteligência da polícia, detalhando o que os detetives encontraram durante batidas na colônia há mais de uma década, foi divulgado e publicado por um grupo de direitos humanos.

Schaefer, um pastor evangélico alemão, fugiu para o Chile em 1961 para escapar de processo por acusações de sodomizar crianças. Centenas de seus seguidores vieram com ele e criaram a colônia aqui, antes chamada de Colonia Dignidad, uma comunidade agrícola autossustentável que fornecia caridade para a população local.

Mas em seu interior, Schaefer exercia controle completo sobre as vidas, corpos e mentes de seus seguidores, que trabalhavam como escravos e eram submetidos a manipulação, surras, choques elétricos e drogas, de acordo com o testemunho de membros da colônia.

Casais não eram autorizados a viver juntos e as crianças eram separadas de seus pais e criadas em uma creche comunal. Apenas os membros da liderança tinham acesso ao aparelho de televisão ou qualquer meio de comunicação. Arame farpado e torres com guardas isolavam os moradores no interior e câmeras e microfones escondidos gravavam todos o tempo todo.

A agência secreta de inteligência de Pinochet trazia dissidentes para a colônia para serem torturados nos anos 70, segundo a comissão da verdade do Chile. Alguns foram executados e enterrados secretamente aqui e, segundo um depoimento em tribunal, seus corpos foram posteriormente exumados, incinerados e jogados em um rio.

O general e outros oficiais também passavam fins de semana descansando na Colonia Dignidad.

Ao longo de décadas, vários governos chilenos deram isenção fiscal à colônia por ser uma organização de caridade e fizeram vista grossa quando pessoas que escapavam denunciavam abusos.

Mas os líderes da colônia acabaram perdendo sua proteção. Schaefer fugiu do Chile em 1997 e se escondeu na Argentina, procurado por crimes de abuso sexual de menores, fraude fiscal, produção de armas, trabalho escravo e colaboração na tortura e desaparecimento de prisioneiros.

Ele foi capturado em 2005 e morreu em uma prisão de segurança máxima em Santiago em 2010, enquanto cumpria uma pena de 20 anos por abuso sexual de menores. A maioria dos membros de seu círculo interno foi presa três anos depois.

Após sua morte, a comunidade votou: eles o enterrariam em seu cemitério? Eles decidiram que não. O homem que adoravam roubou suas vidas.

Hoje, Villa Baviera é uma sombra do que era. Sua força econômica se foi, assim como metade de sua população. A maioria dos jovens adultos partiu para a Alemanha ou outras partes do Chile. O restaurante, hotel e campos agrícolas empregam trabalhadores de cidades vizinhas.

“Quando terminou a ditadura de Schaefer, nós mergulhamos no caos”, disse Thomas Schnellenkamp, 46 anos, filho de um ex-líder preso. “Nós descobrimos o que acontecia aqui, as pessoas começaram a culpar umas às outras e ninguém confiava em ninguém. Havia muita frustração e muitos partiram.”

Mas também foi uma oportunidade para mudança, já que alguns membros da geração mais nova partiram para o ensino universitário e os poucos que retornaram, incluindo Schnellenkamp, assumiram o controle dos ativos da seita.

Os membros da colônia lutam contra a imagem de algozes por pessoas de fora, quando na verdade também foram vítimas. Os líderes da segunda geração destacam que não são responsáveis pelos crimes de seus pais, mas para muitos chilenos, eles ainda representam a seita opressora na qual nasceram.

Dentro da comunidade, há um cabo de guerra entre apaziguar antigos moradores, muitos dos quais continuam resistindo às mudanças, e forjar um novo futuro e serem assimilados pela sociedade chilena.

Alguns acusam os ex-líderes na prisão de ainda manterem o poder.

“Eles exercem uma influência moral sobre a comunidade e seus filhos que a administram”, disse Winfried Hempel, que fugiu da seita em 1997, quando tinha 20 anos. “Eles mantêm as pessoas ali sob um cerco psicológico.”

Mas mesmo para os turistas, é impossível ignorar o passado sombrio de Villa Baviera. Ao longo de estradas sinuosas, onde os campos amarelos de canola contrastam com as plantações ainda verdes de trigo e aveia, se encontram buracos imensos no solo, escavações onde em novembro passado os investigadores procuravam por evidência de atividade criminosa.

Subindo a colina Doradillo, é possível ver dois buracos menores onde acredita-se que dissidentes tenham sido enterrados nos anos 70.

Uma dessas vítimas pode ter sido Claudio Escanilla, um estudante de 17 anos da cidade próxima de Parral, que desapareceu na Colonia Dignidad.

“Eu espero que encontrem um botão, um dente, algo”, disse sua irmã, María Cristina Escanilla, que juntamente com um grupo de ativistas e vítimas realizou recentemente uma cerimônia memorial na colônia.

Escanilla também questionou a nova atividade da colônia. “Como podem realizar turismo em um lugar onde tantos foram mortos?” ela perguntou.

Apesar de alguns poucos líderes da colônia estarem tentando criar um museu em homenagem às vítimas de Schaefer e Pinochet, grupos de direitos humanos requisitaram que certos locais na Villa Baviera sejam preservados como memoriais, e continuam realizando protestos exigindo respostas.

“Nós dissemos às famílias dos desaparecidos que sofremos por suas perdas e permitimos que viessem realizar suas cerimônias”, disse Dorotea Baar, uma dos membros originais da seita. “Mas não sabemos nada e também somos vítimas.”