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Exilada volta ao Iraque para lutar pela liberdade das mulheres

Ian Willms/The New York Times
Imagem: Ian Willms/The New York Times

Somini Sengupta

07/12/2015 06h00

Yanar Mohammed dirige uma rede secreta de abrigos em seu Iraque natal. As mulheres que batem à sua porta são fugitivas de sentenças de assassinato pela honra, sobreviventes de estupro, viúvas de guerra e outras que chegaram à beira do inferno e voltaram.

Os abrigos têm como objetivo dar às mulheres uma segunda chance na vida. E coordená-los também foi uma segunda chance para Yanar.

Ela deixou o Iraque há mais de 20 anos com o marido e o filho, e tentou por muitos anos se adaptar a uma vida de tranquilidade e conforto em Toronto. Mas o exílio não era para ela. "Você já foi expulso da sua casa?", ela disse numa entrevista recente. "Você sabe como é? Você tenta reconquistar seu lugar de uma forma ou de outra."

E foi o que ela fez, retornando em 2003, depois da derrubada de Saddam Hussein. E então se viu no meio da tempestade que atrasou a vida das mulheres iraquianas de maneiras que ela mal podia imaginar. Pior ainda, diz ela, foi testemunhar como as potências ocidentais que assumiram seu país entregaram as rédeas aos clérigos e líderes tribais conservadores, que reescreveram as leis, semearam divisões sectárias e ajudaram a dar origem ao Estado Islâmico. Ela tem arrepios ao pensar que o mesmo parece estar acontecendo na vizinha Síria.

Hoje, a lei da sharia é aplicada, e os assassinatos pela honra raramente são punidos. O ódio sectário se infiltrou com tanta intensidade nos corações de seus compatriotas, diz ela, que vizinhos escravizam as filhas uns dos outros nas terras controladas pelo Estado Islâmico, inclusive na cidade natal de seu pai, Tal Afar. "É impossível contar os passos para trás", disse ela. "Foram muitos."

O grupo que ela ajudou a fundar, a Organização pela Liberdade das Mulheres no Iraque, está se preparando para o inevitável: se e quando o Estado Islâmico for derrotado no campo de batalha, no Iraque e na Síria, as mulheres sequestradas certamente serão segregadas por suas famílias. Muitas, ela teme, serão mortas.

E isso não precisa acontecer, como ela deixou claro para os membros do Conselho de Segurança da ONU em meados de outubro, quando disse --à sua maneira, sem rodeios-- que eles eram em parte culpados.

"Dez anos atrás, mulheres iraquianas relataram ao Conselho de Segurança como estava a nossa situação", ela disse aos diplomatas numa reunião recente dedicada às mulheres na guerra, escolhendo as palavras com cuidado para não assustá-los com sua fúria. "Como seria o Iraque hoje se vocês tivessem ouvido esse alerta e promovido um processo inclusivo no qual as mulheres e grupos minoritários estivessem totalmente envolvidos?"

Seu testemunho foi um reconhecimento de que o Conselho de Segurança fez pouca coisa para levar a sério os direitos das mulheres em questões de guerra e paz, apesar de uma promessa feita em 2000. Uma avaliação das ações do Conselho, divulgada em outubro, concluiu que as punições contra a violência sexual nos conflitos ainda são raras. Somente as partes em conflito participam de negociações de paz, e elas normalmente não incluem mulheres. As mulheres representam uma pequena fração dos mediadores designados pela ONU, e as negociações de paz em curso para acabar com conflitos na Líbia, Síria e Iêmen nem mesmo fingem igualdade de gênero.

Yanar, que se formou em arquitetura, escolheu essa luta. Filha de pai xiita e mãe sunita, ela fugiu do Iraque em 1993. Na época, os ataques aéreos dos EUA tinham agredido o país durante a Guerra do Golfo Pérsico. Até comprar leite era difícil por causa das sanções internacionais contra o Iraque. E além disso havia a repressão do governo. "No Iraque de Saddam, não podíamos respirar", foi o que ela disse.

Uma nova vida começou no Canadá. Segura e tranquila, mas também sem sentido para Yanar. Então, quando o governo de Saddam caiu, ela teve vontade de voltar para o que chamou de "um começo melhor para o resto da minha vida."

Hoje, Yanar, de 55 anos, divide seu tempo entre Bagdá e Toronto, onde seu ex-marido e seu filho ainda moram. Ela usa seus cabelos castanhos soltos sobre os ombros, sem cobri-los. Sob os olhos, tem olheiras escuras e profundas. Ela fala devagar, em tom comedido. E não é nem um pouco diplomática fora das salas do Conselho de Segurança.

Ela culpou as forças dos EUA por instaurar "déspotas" em seu país. Ajudou a organizar protestos contra a corrupção no centro de Bagdá. Falou abertamente a favor de causas que são impopulares até mesmo para muitas mulheres de seu país, como os direitos homossexuais. Seu passaporte canadense --ela se naturalizou alguns anos depois de imigrar-- oferece uma rota de fuga que muitos outros líderes não têm.

Atualmente, Yanar pensa bastante no que está prestes a acontecer na Síria. O Estado Islâmico será barrado nas negociações políticas, sem dúvida, mas alguns dos outros grupos islâmicos linha-dura podem em breve se sentar à mesa, disputando o poder num novo governo de transição. Não se pode permitir que eles tenham esse privilégio, diz ela, embora saiba que seu alerta provavelmente não será ouvido.

"Para mim, os grupos islâmicos que estão lá são como a Ku Klux Klan nos EUA, ou os nazistas na Alemanha", disse ela num telefonema de Toronto esta semana.

Ela citou os esforços dos conservadores --até agora sem sucesso-- para legalizar o casamento infantil. "No Iraque, eles queriam legalizar o casamento com meninas de até nove anos de idade", disse ela. "Como podemos viver com isso?"