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Cidade dos EUA dá emprego e revê tratamento a moradores de rua

Mark Holm/The New York Times
Imagem: Mark Holm/The New York Times

Fernanda Santos

Em Albuquerque (Novo México, EUA)

14/12/2015 06h00

Will Cole virou sua velha van Dodge na estrada que dá acesso a uma rodovia à procura de mendigos dispostos a trabalhar. Na primeira tentativa, quatro homens acenaram para que ele fosse embora, virando as costas para a van quando ele passou. Na terceira parada, porém, nove homens e uma mulher entraram no veículo.

Eram moradores de rua. Mas, de repente, como parte de uma nova tentativa da prefeitura de Albuquerque para lidar com o aumento da pobreza e da miséria, transformaram-se em funcionários da prefeitura por um dia.

Usando luvas e coletes fluorescentes, eles rastelaram um terreno sujo ao lado dos trilhos de uma ferrovia, retirando o lixo de vidas que podiam muito bem ser as suas: um cobertor marrom surrado, duas bíblias molhadas pela neve derretida, uma trilha de latas amassadas de cerveja barata.

Para os participantes, o trabalho foi pago decentemente: US$ 9 (R$ 33) por hora e um almoço com sanduíches, batatas fritas e barras de granola em um parque. Para a prefeitura, isso representou uma mudança para uma política voltada à compaixão e aos serviços públicos.

“O objetivo é a dignidade do trabalho, que é uma coisa difícil de se medir ou colocar num gráfico", disse o prefeito Richard J. Berry. "Se conseguirmos aumentar um pouco que seja a sua confiança, colocar alguns dólares no seu bolso, fazer com que eles se estabilizem a ponto de buscar assistência, quer seja nos serviços de saúde mental ou de abuso de substâncias --este é o ciclo virtuoso que estou buscando.”

Depois que James Boyd, um morador de rua esquizofrênico, foi morto a tiros pela polícia no ano passado, gerando protestos e pedidos de reforma do Departamento de Polícia de Albuquerque (uma força de mil policiais cuja taxa de assassinatos a tiros é oito vezes maior do que a de Nova York), a prefeitura procurou reformular sua abordagem em relação aos sem-teto. Enquanto outras cidades, incluindo Nova York, Baltimore, Los Angeles e Washington, vêm tentando desocupar acampamentos de sem-teto ou empurrá-los ainda mais para a periferia, Albuquerque decidiu deixar de lado a abordagem punitiva que havia definido as estratégias no passado.

Isso é, em parte, resultado de um acordo com o Departamento de Justiça, que lançou uma avaliação dura sobre o uso da força pelos policiais ao longo dos anos, citando um padrão de violência e maus-tratos que afetou desproporcionalmente os doentes mentais, inclusive muitos que estavam vivendo nas ruas. Agora, a formação para atuar em situações de crise se tornou obrigatória para os cadetes da polícia, que devem encontrar uma forma de agir em situações que imitam a vida real --encontros com dependentes de drogas em dificuldades, vítimas de estupro ou veteranos de guerra com tendências suicidas-- sem sacar suas armas.

O programa reproduz um sistema de trabalho diário que já está disponível para moradores de rua em todo o país, através de agências de trabalho privadas. Esse sistema, no entanto, é muito exploratório --os trabalhadores são mal remunerados, enquanto as agências lucram-- e quase nunca leva a empregos estáveis, disse Dennis P. Culhane, professor de política social da Universidade da Pensilvânia, cuja principal área de pesquisa é a população de rua.

A maioria das entidades do governo oferece soluções temporárias, como refeições e camas durante a noite, mas, segundo ele: "isso não tem como objetivo fazer as pessoas irem para a frente, ajudá-las a sair do problema.”

O programa de Albuquerque, disse Culhane, parece fazer reformas significativas que os trabalhadores temporários têm pedido há décadas, permitindo que os participantes fiquem com todo o dinheiro que ganham, e ao mesmo tempo possibilitando que eles encontrem empregos de tempo integral. Cinco já tinham conseguido isso desde o começo do programa, em setembro, entre eles um homem que encontrou trabalho num centro de reciclagem privado, disseram funcionários da prefeitura.

O motorista da van, Cole, um segurança de ombros largos do Centro de Hospitalidade de St. Martin, o maior centro de assistência para moradores de rua de Albuquerque, pega dez mendigos em cantos aleatórios da cidade às terças-feiras e quintas-feiras, e depois os leva a terrenos baldios, parques abandonados e outros lugares precisando de manutenção, como os trilhos de trem que eles estavam limpando outro dia.

Para receber seu salário, eles devem trabalhar duro durante um turno completo, do início ao fim, o que significa de cinco a seis horas, em média. Eles são pagos em dinheiro no escritório de trabalho do centro de hospitalidade, a dois quarteirões do abrigo que alimenta cerca de 400 pessoas por dia.

A única mulher entre os trabalhadores naquela terça-feira era Ramona Beletso, uma índia Navajo de 40 e poucos anos que já havia fugido duas vezes do abuso e da indigência na reserva e ido para Farmington, uma cidade pobre no norte do Novo México, e em seguida para Albuquerque, no verão passado, onde ela disse não ter conseguido nenhum dos empregos aos quais se candidatou.

Ela aceitou o trabalho para pagar "uma boa refeição", e disse que guardaria o resto para quando voltasse a Farmington, o que planeja fazer um dia.

"Eu nem sei como eu acabei virando sem-teto", disse Beletso, olhando para um par de meias listradas cor de rosa nas proximidades, abandonado numa poça de lama que secava. "Trabalhar me ajuda a esquecer."

Para alguns, o trabalho e o dinheiro atendem a necessidades mais nefastas: um homem de 20 anos, nauseado por causa da abstinência de heroína durante o turno, correu para longe logo que recebeu o salário --para comprar uma dose, disse ele.

Para Beletso, pegar o trabalho significou recuperar a honra e o orgulho que ela havia perdido nas ruas, dormindo em caixas de papelão e sucumbindo ao álcool, seu anestésico.

“Eu trabalhei por esse dinheiro”, disse ela no fim do turno. “É uma sensação boa.”