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Cansadas da guerra, facções que derrubaram Gaddafi consideram a paz na Líbia

Em Misrata (Líbia), confrontos violentos ainda constituem cotidiano local - Aimen Elsahli/Reuters
Em Misrata (Líbia), confrontos violentos ainda constituem cotidiano local Imagem: Aimen Elsahli/Reuters

Carlotta Gall

Em Misrata (Líbia)

14/01/2016 06h00

Quatro anos após a revolução da Líbia, as cicatrizes da guerra ainda são visíveis em Misrata -- edifícios com marcas de tiros e buracos de foguetes, pichações nas paredes lembrando combatentes derrubados e um museu de guerra com restos de munições enferrujadas na calçada da frente.

Misrata tornou-se famosa por sua resistência ao cerco de oito meses pelas tropas de Muammar Gaddafi durante a revolta da Primavera Árabe em 2011. Seus combatentes ganharam fama de duros, liderando o assalto final sobre a capital, Trípoli, capturando e matando Gaddafi. Depois disso, suas milícias brigaram por território e exploraram negócios ilegais.

No entanto, hoje, muitos desses mesmos combatentes estão defendendo a paz. Cansados da guerra e até mesmo envergonhados daquilo que se tornaram, alguns se recusaram a lutar, organizaram seu próprio cessar-fogo e acusaram os líderes políticos de provocarem uma guerra civil.

A maior parte das brigadas revolucionárias de Misrata assinaram acordo para proteger uma unidade de governo mediada pelas Nações Unidas --e na sexta-feira (8) forneceram segurança para integrantes do governo em sua primeira viagem à Líbia para visitar vítimas de um atentado suicida na cidade de Zlitan.

Contudo, mesmo assim, combatentes de um dos grupos que haviam assinado o acordo não deram passagem e abriram fogo contra o comboio, em um lembrete de como ainda é difícil forjar um comando unificado na Líbia.

Inclinação à paz

Apesar das divisões, a virada do ano passado em direção à paz é significativa, não só porque as milícias de Misrata eram tidas como parte do problema que vinha arrasando o país, mas também porque a mudança de humor pode ajudar a tirar a Líbia do abismo.

“Dói olhar para trás para as tragédias”, disse Ibrahim Ben Ramadan, 31, ex-comandante do Liwa Nablous, um grupo de brigadas de combate e o mais jovem entre os candidatos que concorreram para o Parlamento em 2014. “Eu não me arrependo, mas vejo que as pessoas desviaram a revolução de seu curso.”

Nos últimos 18 meses, as brigadas de Misrata têm se envolvido em uma luta de poder com forças no leste lideradas pelo ex-general do exército Khalifa Hifter. As duas facções dividiram o país, e os homens que juntos derrubaram o regime Gaddafi agora estão em lados opostos de uma guerra civil.

As brigadas de Misrata formam a espinha dorsal do Amanhecer da Líbia, uma poderosa facção político-militar aliada aos grupos islâmicos que mantém Trípoli e lideram o governo.

Contra eles, estão as forças anti-islâmicas do Leste da Líbia, junto com brigadas da região ocidental de Zintan, montadas por Hifter sob a bandeira da Operação Dignidade. Elas apoiam o governo internacionalmente reconhecido que se refugiou na cidade oriental de Tobruk.

As facções dos dois lados já concordaram com um acordo de paz mediado pelas Nações Unidas, mas ainda têm que colocá-lo em ação. Nesse meio-tempo, elas destruíram grande parte da segunda maior cidade da Líbia, Benghazi, acabaram com o aeroporto de Trípoli e, em meio ao caos, permitiram que o Estado Islâmico conquistasse uma posição no país.

Alguns dos jovens revolucionários de Misrata questionaram a tomada de poder desde o início. “A revolução foi uma coisa espontânea, não tínhamos nada de político, não havia um objetivo de governar”, explicou Ramadan.

No verão de 2014, pelo menos duas brigadas se opuseram às ordens de combater as brigadas rivais de Zintan pelo controle de Trípoli, mas, como podiam ser denunciadas como traidoras, participaram relutantemente, de acordo com vários combatentes entrevistados.

Dissidência crescente

A dissidência cresceu ao longo dos meses desde que as brigadas de Misrata foram usadas para controlar cidades e terminais de petróleo distantes, e quando receberam ordens de perseguir as brigadas de Zintan para além de Trípoli. Os combatentes começaram a acusar os integrantes do Congresso Nacional Geral de utilizar as brigadas para promover suas ambições políticas.

Hamza Ahmed Abusnaina, 31, um comandante de Liwa al-Mahjoub, foi enviado com suas forças para assumir o controle do depósito de petróleo em Sidra, no início de 2015, mas, segundo ele, seu batalhão se retirou depois de seis dias.

“Senti que havia uma conspiração contra a minha cidade”, disse ele. “Muitos estavam sentindo o mesmo. Eles começaram a ver que os políticos estavam fazendo isso.”

Em fevereiro passado, as unidades de Misrata que lutavam contra as brigadas de Zintan e Warshafana ao sul de Trípoli pediram um cessar-fogo, após uma batalha particularmente esgotante que matou 58 pessoas em apenas quatro horas, a maioria delas combatentes locais de Warshafana.

“Quando viram isso, eles se sentaram e conversaram”, disse Abobaker Alhraish, conselheiro da cidade de Misrata que apoiou o processo de paz.

Homens de ambos os lados se reuniram em uma terra de ninguém durante três dias, sem dizer a seus líderes. “Eles se sentaram no descampado e esclareceram as coisas”, disse ele.

Aos combatentes de Misrata, havia sido dito que estariam limpando áreas pró-Gaddafi, mas descobriram que seus adversários eram jovens locais que estavam lutando porque foram forçados a deixar suas casas, disse ele.

“A juventude alcançou o cessar-fogo em Warshafana”, explicou Alhraish. “Foi uma surpresa para nós também.”

O cessar-fogo não foi aceito por todos. Um clérigo sênior rotulou-os como traidores. O comandante, Abusnaina, foi acusado de aceitar subornos.

“Alguns dos nossos homens foram pessoalmente ameaçados”, disse Alhraish. “Foi muito difícil no começo.”

Mas o cessar-fogo foi mantido, em parte porque os jovens combatentes permaneceram firmes. “Eles são apaixonados e têm formas diferentes de pensar”, disse Alhraish. Ele se lembrou de quando um deles agarrou-o pela camisa e gritou: “Nós não vamos mais lutar”.

O cessar-fogo foi um ponto de virada para a cidade. Os comerciantes pragmáticos de Misrata estão ressurgindo. As empresas estão se reconstruindo, substituindo os edifícios com marcas de batalha por novos blocos de vários andares e fachadas de lojas reluzentes. Refugiados e investidores estão vindo de outras cidades para Misrata, porque é seguro.

Os combatentes de Misrata ainda representam uma grande força no país, mas o elemento pró-paz gera uma maturidade crescente sobre as suas limitações.
Alguns deles já estão conversando com combatentes das fileiras rivais, da Operação Dignidade.

“Hifter e o pessoal da Dignidade não são todos radicais”, disse Abusnaina, o comandante. “Eles impõem condições, mas nós também.”

Em outra mudança, os comandantes de Misrata começaram a considerar o Estado Islâmico como a verdadeira ameaça para a Líbia, ao invés de seus inimigos pró-Gaddafi, e estão exortando uma unidade entre os líbios como a melhor forma de defesa.

Soluções para o país evitam radicalismo

As forças de Misrata enviadas para lutar contra o Estado Islâmico na cidade de Sirte, no ano passado, pararam na beira da cidade e, eventualmente, recuaram.
“O fracasso foi que a população local não queria nossa presença”, disse Mohamed el-Darrat, vice-comandante da Terceira Força, uma das vertentes dentro do amanhecer da Líbia. Mas isso pode mudar, disse ele.

“Se os problemas dos líbios forem resolvidos, eles vão se virar contra o Estado Islâmico”, previu.