Abertos para visitação, bunkers britânicos são ruínas silenciosas preservadas da Guerra Fria
Sob o solo do Reino Unido jaz um legado da Guerra Fria que já foi um segredo guardado a sete chaves, mas agora está simplesmente esquecido.
Por causa da proximidade da Europa Oriental –um míssil soviético teria levado apenas quatro minutos da detecção ao alcance do alvo– muita gente ali sentiu a ameaça nuclear daquele período com um imediatismo visceral. O resultado é uma rede complexa de bunkers estabelecida pelo governo, que inclui desde os mais de 1.500 pequenos postos de monitoramento de radiação espalhados pela região – quase sempre em áreas rurais remotas – a mais de uma dúzia de gigantescos complexos subterrâneos dos quais o país poderia ser governado se a capital fosse aniquilada. Os esconderijos, muitos dos quais hoje abertos ao público, faziam parte de um vasto plano que, como percebi em visita recente, era impressionante, mas praticamente inútil, mais um bálsamo contra o terror atômico do que uma opção viável de sobrevivência.
"Durante a Guerra Fria, o Reino Unido ficou conhecido como 'o porta-aviões indestrutível' dos EUA porque abrigava os bombardeiros atômicos do aliado, os sistemas de comunicação de longo alcance, a infraestrutura de inteligência e mísseis, tornando a ameaça de um ataque nuclear palpável", escreveu Nick Catford em "Cold War Bunkers", livro de fotos publicado em 2010. O autor é membro da Subterranea Britannica, um clube inglês dedicado ao estudo de todo tipo de estrutura do tipo. "Para combater a ameaça, o país se tornou a nação com o maior número de bunkers do mundo", completa.
Nasci em 1974 e sempre tive interesse no imaginário do período que dominou a cultura popular e política da minha infância –desde a Iniciativa Estratégica de Defesa, ou Guerra nas Estrelas, a filmes como "Jogos de Guerra" e "Amanhecer Violento" e as músicas antiproliferação assustadoras de Ozzy Osbourne, como "Killer of Giants" e "Crazy Train", que não saía da MTV.
Desde então tenho curiosidade em saber o que aconteceu com a enorme infraestrutura de defesa do Ocidente depois do colapso da União Soviética, em 1991; aproveitei uma viagem em família para a Inglaterra para visitar alguns dos locais relativamente desativados, mas quase sempre estranhos, usados na Guerra Fria – façanha que ganhou ainda mais importância porque aconteceu pouco antes do 70º aniversário da expressão "cortina de ferro", cunhada por Winston Churchill, no discurso "Sinews of Peace" ("Nervos da Paz"), em cinco de março de 1946, evento que muitos historiadores marcam como o início da Guerra Fria.
Em nenhum ponto da minha peregrinação a ameaça psíquica da Guerra Fria se mostrou mais evidente do que no Bunker Nuclear Secreto de Kelvedon Hatch, em Essex, a cerca de 40 km do centro de Londres, que se autodenomina "o maior e mais profundo bunker dos tempos da Guerra Fria aberto ao público no sudeste da Inglaterra". Desativado no início dos anos 90, o espaço podia acomodar 600 pessoas, entre militares e civis, todas trancadas no subterrâneo, atrás de portas de 1,5 tonelada. Havia inclusive planos para abrigar o primeiro-ministro e um gabinete provisório, mas, durante a minha visita, as únicas formas humanas que vi foram os manequins assustadores, em tamanho natural, vestidos com uniformes e perucas tortas para ilustrar a vida nas várias alas do ambiente, que incluíam um refeitório, um ambulatório, dormitórios e um quartel.
Os visitantes são recebidos com um vídeo datado e meio embaçado de Mike Parrish, o dono do local. Ele aparece na tela da TV como um homem de meia-idade de barba grisalha bem aparada e um suéter bordô de gola em "V" onde se vê um trifólio, ou seja, o símbolo internacional de radiação. Suas instruções sucintas e práticas sobre como proceder para explorar o local desacompanhado tem o ar de uma gravação que deve ser exibida caso sofra uma morte precoce.
O bunker foi construído pela Força Aérea Real, em 1952, depois que o terreno sob o qual se encontra foi comprado compulsoriamente da família de Parrish. Inicialmente deveria ser uma instalação de radares, mas acabou evoluindo para ser o que Mike descreve no vídeo como "a opção de sede do governo regional em caso de um ataque nuclear". No início da década de 90, foi vendido de volta à família, que hoje o administra como uma atração turística claramente improvisada. Recebi instruções de seguir as flechas brancas no formato de bombas guiadas e depositar sete libras em uma caixinha da honestidade no fim do passeio, mas os cartazes avisando que eu estava sendo vigiado pelo circuito fechado de TV aumentavam o clima geral de ameaça.
O Kelvedon Hatch é um dos mais de doze postos subterrâneos do governo no país, ao mesmo tempo gloriosamente bizarro e genuinamente fascinante. O senso de humor mórbido do dono se faz evidente nas exposições e, especialmente no cinismo do audioguia. E faz um contraste gritante com as Salas de Guerra de Churchill, no centro de Londres, uma das atrações turísticas mais populares e bem boladas da Inglaterra. Embora utilizados apenas durante a Segunda Guerra Mundial, os espaços, com figuras de cera e detalhes históricos primorosos, provam ser um antecedente excelente para a "febre do bunker" que varreria a Inglaterra, estimulada principalmente pelos bombardeios aéreos alemães durante o conflito.
A entrada do bunker de Kelvedon Hatch é um chalezinho discreto que, na verdade, esconde uma fortaleza de aço e concreto reforçado. Conforme fui descendo o túnel de 120 m, segurando o aparelho vermelho grandão do guia de áudio, ouvi a voz lacônica de Parrish questionar no meu ouvido: "Imagino que você não pense muito na possibilidade de uma nova guerra." A seguir, conta que o solo da região não produziria nada durante três anos após um ataque nuclear, período durante o qual seria necessário brigar por comida com as "gangues saqueadoras" de sobreviventes da radiação em um ambiente semelhante ao dos tempos medievais.
Segundo a sabedoria comum, uma guerra nuclear aconteceria após algumas semanas de tensão crescente –como o que ocorreu durante a Crise dos Mísseis, em Cuba–, seguidas de uma guerra convencional curta e, então, uma guerra nuclear de proporções gigantescas, que Parrish descreveu no áudio como "a grande explosão". Tirando o fato de ser vigiado o tempo todo por um grupo de soldados e durante a manutenção rotineira dos equipamentos, o bunker não foi usado regularmente durante o período da Guerra Fria, mas teria funcionários, alimentos e água suficientes se a guerra fosse iminente.
A passagem úmida e mofada deixa o visitante a aproximadamente trinta metros da superfície, no ponto mais profundo do bunker, que se acreditava também ser o mais seguro. Era ali que se localizavam as operações mais importantes da estrutura de três andares, incluindo os imensos sistemas de filtragem de ar e refrigeração essenciais para manter o bunker em si e as "salas de deliberação", onde militares e civis tentariam determinar o tamanho e a natureza do ataque e a gravidade das consequências.
Também nessa parte mais funda ficava a sala de comunicações pouco iluminada –de onde os responsáveis teriam coordenado uma reação militar e enviado instruções aos sobreviventes na superfície–, dando a impressão de ser um monumento à obsolescência. Ainda há mais de 2.500 linhas telefônicas e as máquinas de telex que teriam recebido instruções nas escrivaninhas próximas da central telefônica antiga, na qual as telefonistas trabalhariam conectando os fios aos soquetes correspondentes.
Ocupando todos os espaços livres possíveis havia peças de equipamentos, instrumentos, roupas protetoras, mapas e documentos sem identificação e dispostos de maneira aleatória. Em uma das mesas estava a cópia de uma lista telefônica comercial aberta na seção de funerárias; em outra havia edições antigas do "Daily Mail", incluindo a que cobriu a coroação da rainha, com a seguinte manchete: "Vamos enaltecer o nosso próprio estilo de vida".
Dei uma espiada no estúdio da BBC ali ao lado, ainda intacto, do qual o(a) primeiro(a)-ministro(a), se tivesse que ter ficado no bunker, falaria à nação. Ao microfone, uma manequim sorridente, vestida de rosa-choque, que se parecia muito com Margaret Thatcher. A trilha sonora, composta de sirenes, apitos, alertas e anúncios de emergência era só o que havia para quebrar o silêncio assustador.
O objetivo do bunker, exlica a voz de Parrish, era o de proteger as pessoas que "surgiriam na hora certa para dar aos sobreviventes esperança, ajuda e, quem sabe, um pouco de comida". Essas pessoas – funcionários públicos, cientistas, militares e membros do governo – teriam trabalhado no andar intermediário, que ainda tem estações de trabalho com computadores de mesa amarelados e telefones analógicos de disco. Ri alto ao olhar dentro de um cubículo marcado como "primeiro-ministro" e ver um manequim risonho, com o cabelo grisalho partido ao meio –provavelmente John Major– deitado e afundado até o queixo sob um cobertor cinza.
O andar superior, mais próximo à superfície, tem fileiras e mais fileiras de beliches e o ambulatório, onde os bonecos em roupas cirúrgicas se debruçam sobre os que fazem as vezes dos doentes.
Na saída deixei 2 libras na caixinha da honestidade da câmara fotográfica e comecei a me preparar para tirar um retrato usando a máscara de gás, mas aí me toquei de que não havia ninguém para operar a Polaroid. E me vieram à mente as palavras assustadoras de Parrish no audioguia, quando disse que, se o chalé fosse atingido diretamente, era ali que eu teria "que passar o resto da vida".
E acrescentou: "Não há ninguém lá em cima; além do mais, o local é secreto, ou seja, ninguém sabe que você está aqui."
O clima era mais ameno no dia seguinte, quando conheci dois membros da Subterranea Britannica, Ed Combes e Mark Russell, na periferia do vilarejo de Cuckfield, em West Sussex, no posto de monitoramento do Royal Observer Corps que recuperaram. Ele nada mais é que uma salinha minúscula enterrada a 4,5 m no subsolo, de onde uma equipe de civis voluntários teria analisado as consequências do ataque nuclear e enviado os dados coletados para uma sala de deliberação como a que vi em Kelvedon Hatch.
O presidente do clube, Martin Dixon, e sua mulher, Linda, se juntaram a nós.
Na superfície, o posto passa despercebido, um pequeno cubo verde de concreto com uma vigia no topo que se eleva do chão no meio de um terreno de 1,2 ha, cercado, onde também havia colmeias de um apicultor e quatro ovelhas pastando. Um balão-sonda cilíndrico –o detector de radiação– se destaca no gramado e alguns metros dali, na vigia próxima à saída de ar, logo abaixo do mastro onde está hasteada a bandeira azul clara do Royal Observer Corps, força voluntária que, em tese, avisaria a população do ataque nuclear iminente e analisaria as consequências.
"Em 1991, quando a União Soviética entrou em colapso e a Guerra Fria acabou, o trabalho foi interrompido bruscamente", conta Russell, que já visitou 900 locais semelhantes. Em muitos deles ainda há bitucas de cigarro nos cinzeiros, um saquinho de chá esquecido em alguma xícara deixado no último dia em que os voluntários estiveram ali. "São verdadeiras cápsulas do tempo", completa.
Combes, 35, e Russell, 37, recolheram vários artefatos dos postos de observação quando começaram a reformar o de Cuckfield, que foi escolhido por estar em relativa boa forma. "Alguns estavam cheios de água, outros tinham animais mortos; tinha também os que tinham sido invadidos pela molecada, que botou fogo em tudo", explica Russell. Com permissão da prefeitura, limparam o espaço e o encheram com objetos da época da Guerra Fria, equipamentos e provisões doados por antigos observadores, trocados com outros colecionadores ou adquiridos no eBay, informa Combes. Em 2010, começaram a abrir o espaço ao público, gratuitamente, durante vários fins de semana por ano.
O posto de Cuckfield é um dos muitos abertos à visitação, mas o Subterranea Britannica (ou "Sub Brit" para os entendidos) também organiza acesso para seus mais de 1.100 membros pagantes a vários outros centros subterrâneos e secretos geralmente não acessíveis. Dixon, o presidente, me disse que aprecia qualquer tipo de espaço subterrâneo, sejam minas de carvão, túneis de transporte ou instalações militares porque, novos ou antigos, são uma boa faceta a partir de onde se estudar a história local. "Não há nada mais empolgante que entrar num lugar em que pouca gente esteve, que ficou escondido durante séculos que, ao mesmo tempo, está pertinho do pub."
Um a um, descemos a escada, no poço apertado, que levava ao posto, tomando cuidado para não cair nos degraus escorregadios de metal. Com pouco mais de 9 m², a impressão que tive foi a de estar em uma toca de coelho, ainda que meio grandinha. Tinha painéis de isopor cobertos com tinta branca retardante de chamas nas paredes e no teto e tinha espaço apenas para os equipamentos de comunicação e monitoramento, incluindo um medidor gigante de radiação em quilopascal e uma linha telefônica de sistema duplo parecido com os primeiros telefones. Combes e Russell às vezes o utilizam ainda para se comunicar com os outros postos. Após alguns minutos, meus pés começaram a gelar por causa do ar frio e úmido da irradiava do chão de concreto sobre o qual havia pedaços de carpete, em uma tentativa inútil de isolá-lo.
Depois da explosão nuclear, um dos três "observadores" teria que correr para fora do bunker, em um ambiente muito provavelmente contaminado pela radiação, para retirar os negativos da câmera tipo pinhole ao lado da vigia, a partir dos quais poderiam saber sobre o local e o tipo de explosão.
Combes explicou: "Se o ataque fosse iminente, os voluntários soariam o alarme manual e lançariam pequenos sinalizadores para avisar à população que deveria ir para os subterrâneos ou mesmo para o sótão e ficar ali até esses caras detectarem, com os equipamentos que tinham a seu dispor, os níveis de radiação para saber quando era seguro voltar para a superfície e continuar a vida", fazendo um sinal de aspas no ar para a palavra "seguro". E revelou que conversou com dezenas de ex-observadores, todos muitos orgulhosos do trabalho que tinham feito, mas alguns admitiram que o sistema era totalmente ineficaz.
Além das peças e aparelhos, Combes e Russell também mostraram curiosidades como a cópia do manual do observador e da diretriz Official Secrets Acts, além de latas de ração de várias décadas de idade onde se lia "Frango ao curry", "Torta de carne e rim" e "Flocos de aveia" que me lembraram dos tempos em que a culinária britânica era medíocre. Perto da escada, um cubículo contém um banheiro químico onde cada folha do papel higiênico antigo tem o selo em que se lê "Propriedade do Governo".
Cada um dos integrantes do grupo de voluntários responsável pelo posto fazia testes psicológicos para confirmar a capacidade mental de suportar longos períodos de confinamento em caso de uma guerra nuclear, informou Combes. Com nós cinco ali no posto por cerca de meia hora, pude perceber como o fato de ficar preso por longos períodos poderia deixar a pessoa maluca –e inclusive tive um momento de pânico ao pensar que poderíamos ficar presos ali.
Perguntei a Combes se, nas visitas ao posto, ele não tinha medo de algum idiota vir e fechar a vigia, trancando-o lá dentro.
"Toda vez", respondeu sem pestanejar.
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