Os debates realmente importam nas eleições dos EUA?
Quarenta anos depois, um momento nos anais dos debates presidenciais continua sendo um clássico que vale a pena lembrar, enquanto Hillary Clinton e Donald Trump se preparam para enfrentar-se cara a cara na segunda-feira (26).
"Não há dominação soviética no Leste Europeu", declarou o presidente Gerald Ford quando enfrentou Jimmy Carter em 1976, "e nunca haverá sob um governo Ford". A realidade não poderia ter sido mais diferente, e se refletiu na reação espantada de um participante do debate que levantou a questão: Max Frankel, um editor-sênior de "The New York Times" que na época era editor da página de editoriais e depois foi editor-executivo do jornal.
"Desculpe, senhor", disse Frankel. "Eu o ouvi dizer que os russos não estão usando o Leste Europeu como sua esfera de influência, ocupando a maioria dos países de lá e garantindo com suas tropas que seja uma zona comunista?" Sem se abalar, Ford foi em frente, dizendo que os países do Leste Europeu que ele havia citado não se consideravam dominados pela União Soviética e que "os EUA não admitem" a existência dessa dominação.
Seu engano e a reação imediata do debatedor são lembrados em um exame dos debates presidenciais por Retro Report, uma série de documentários que exploram reportagens importantes do passado e seu efeito duradouro. Quão profundamente os debatedores devem ser avaliados é uma questão com repercussão especial neste ano, já que Trump, em particular, ganhou "Pinóquios" suficientes dos verificadores de fatos para preencher muitas oficinas de Gepeto.
Mas o moderador agendado para um terceiro debate Trump-Hillary, Chris Wallace, da Fox News, evitou sugestões de que é seu dever responsabilizar os candidatos se eles deixarem fatos críticos sem explicação. "Não vejo meu papel como de patrulha da verdade", disse ele, comentário que provocou ataques consideráveis.
"Patrulha da verdade", mesmo que não tenha se chamado assim, tornou-se a memória mais duradoura daquele debate em 1976. Na verdade, Frankel pensou estar atirando para o presidente uma boia salva-vidas, e não um anzol.
"Foi instintivo eu dar a Ford uma oportunidade de se esclarecer", de acordo com a tradição jornalística, disse ele em uma recente troca de e-mails. "Não atraímos um presidente para armadilhas com perguntas maliciosas ou provocamos confusão. Pretendemos explicar a política, e devemos dar seguimento se ele deixar seu significado impreciso."
Ao longo dos anos, os debates presidenciais tenderam a ser menos lembrados por seu peso intelectual do que por suas gafes e piadas, seja o tropeço de Ford ou a reação de Ronald Reagan em 1980 --"Lá vem você de novo"--, ou a resposta fria de Michael Dukakis em 1988 sobre qual seria sua reação se sua mulher fosse estuprada e assassinada, ou o olhar impaciente de George Bush para o relógio de pulso em 1992, ou a respiração desesperada de Al Gore em 2000 --prova de que Herman Hupfeld não acertou muito bem em sua conhecida canção "As Time Goes By", que ficou famosa no filme "Casablanca". Às vezes um suspiro não é só um suspiro.
Mas se erros e respostas atrevidas são modificadores de jogo é uma questão que atiça os debates presidenciais desde o primeiro, realizado em 26 de setembro de 1960, entre John F. Kennedy e Richard Nixon.
O enredo que rapidamente se enraizou dizia que Kennedy venceu só pela boa aparência, que contra um pano de fundo leve ele parecia firme e autoritário em seu terno escuro, enquanto Nixon, recuperando-se de um ferimento, parecia pálido e suado, com o aspecto em nada beneficiado pela escolha de um terno cinza. Os que não viram nada disso e só escutaram pelo rádio --situação muito mais comum em 1960 do que hoje nos EUA-- acreditaram que Nixon havia ganhado. Assim dizia a história.
Muitos estudiosos desbancaram essa narrativa, entre eles David Greenberg, um professor de história, jornalismo e estudos de mídia na Universidade Rutgers. Greenberg afirma que o desempenho geral de Kennedy, não apenas seu visual, ganhou o debate. Ele mostrou, como senador, que podia enfrentar um vice-presidente em exercício. Quanto a Nixon ter supostamente prevalecido no rádio, a evidência disso é frágil, porque, comentou Greenberg, não foram feitas pesquisas cientificamente rigorosas na época.
(Seja qual for a realidade, Nixon sentiu-se queimado pela experiência e passou a ver a televisão com desconfiança --até que disputou novamente a Presidência em 1968, desta vez com sucesso, tutorado na arte da câmera por um jovem produtor chamado Roger Ailes. Este, deposto em julho da presidência da Fox News, é mais uma vez um mentor de mídia, para Trump.)
Quando se trata de substância, e não apenas de um tropeção aqui ou uma frase esperta acolá, um debate pode conquistar ou derrotar uma candidatura? Os especialistas há muito se dividem. Alguns consideram os debates decisivos. Essa foi a opinião dada no mês passado por Gary May, um historiador da Universidade de Delaware, que escreveu no site Daily Beast: "Por bem ou por mal, o olho de laser da televisão revela a adequação dos candidatos à Presidência".
Ora, talvez não, sugere outro acadêmico, John Sides, um professor-adjunto de ciência política na Universidade George Washington. Escrevendo na "Washington Monthly" em 2012, Sides disse: "Os acadêmicos que examinaram mais cuidadosamente os dados concluíram que, quando se trata de mudar votos suficientes para decidir o resultado da eleição, os debates presidenciais raramente, ou nunca, importaram".
Mesmo os fracassos podem não ficar evidentes de imediato. Frankel reconheceu que ele mesmo não identificou o potencial danoso dos comentários de Ford sobre "não haver dominação soviética". Muitos outros americanos também deixaram de vê-lo até que análises na televisão e em jornais moldaram seu consenso de que havia acontecido um sério deslize presidencial.
Hoje em dia, porém, os eleitores não precisam esperar que se forme um senso comum. Podem consegui-lo, ou pelo menos o que parece isso, em tempo real vendo linhas móveis em suas telas de televisão que representam as impressões de grupos de opinião sobre os candidatos, ou seguindo uma avalanche de opiniões apresentadas pelos comentaristas no Twitter e em outras redes sociais.
Como porcentagem da população americana, a audiência de televisão nos debates diminuiu. O número de espectadores em 2012, cerca de 67 milhões, foi mais ou menos igual ao de 1960. Mas havia uma população estimada em 314 milhões nos EUA em 2012, e apenas 180 milhões em 1960. É claro que milhões de pessoas hoje, neste país e no exterior, podem estar sintonizadas por meio de serviços de streaming online.
Em declínio ou não, "os debates são importantes", disse Frankel, "porque normalmente temos muito poucas oportunidades de conhecer os candidatos e confrontá-los com perguntas difíceis".
Para Greenberg, os méritos do que os candidatos dizem no palco podem não parecer tão importantes quanto o mero fato de eles estarem lá, submetendo-se à sabatina diante de milhões de pessoas. "Os debates ganham força de sua posição como um ritual importante", escreveu ele na revista "Daedalus" em 2009. A experiência, segundo ele, "serve, de uma maneira tranquila, para intensificar nosso compromisso com a vida política".
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