Topo

Como um dossiê com dados não confirmados gerou crise para Trump

Gary Hershorn/Xinhua
Imagem: Gary Hershorn/Xinhua

Scott Shane, Nicholas Confessore e Matthew Rosenberg

Em Washington (EUA)

12/01/2017 13h37

Sete meses atrás, um respeitado ex-espião britânico chamado Christopher Steele venceu um contrato para montar um arquivo sobre as ligações de Donald Trump com a Rússia. Na semana passada, os detalhes explosivos --relatos não comprovados de festas com prostitutas, negócios imobiliários que serviam como propina e coordenação com a inteligência russa para invadir os computadores dos democratas-- foram resumidos para Trump em um apêndice de um relatório de inteligência "top secret".

As consequências foram incalculáveis e vão se desdobrar muito depois da posse do presidente. A notícia do sumário, que também foi entregue ao presidente Barack Obama e a líderes do Congresso, vazou para a CNN na terça-feira (10), e o resto da mídia deu seguimento com reportagens sensacionalistas.

Trump denunciou as afirmações não comprovadas na quarta-feira (11) como uma fabricação, uma difamação no estilo nazista, elaborada por "pessoas doentes". Isto minou ainda mais seu relacionamento com os órgãos de inteligência e projetou uma sombra sobre o novo governo.

No final da noite de quarta-feira, depois de falar com Trump, James Clapper Jr., o diretor da inteligência nacional, emitiu uma declaração lamentando os vazamentos  e dizendo sobre, o dossiê de Steele, que as agências de inteligência "não fizeram uma avaliação de que a informação neste documento é confiável". Clapper sugeriu que, de qualquer modo, as autoridades de inteligência o haviam compartilhado para dar aos políticos "a imagem mais completa possível de qualquer questão que possa afetar a segurança nacional".

Partes da história continuam fora de alcance --mais criticamente, a pergunta básica de até onde o dossiê é verdadeiro. Mas é possível montar os pedaços de uma narrativa grosseira do que levou à atual crise, incluindo perguntas sobre os laços que unem Trump e sua equipe à Rússia. O episódio também oferece uma visão do lado oculto das campanhas presidenciais, envolvendo detetives privados à procura do pior que pudessem encontrar sobre o próximo líder americano.

A história começou em setembro de 2015, quando um rico doador republicano que se opunha fortemente a Trump deu o dinheiro para contratar uma firma de pesquisas em Washington dirigida por ex-jornalistas, a Fusion GPS, para compilar um dossiê sobre os escândalos e as fraquezas do magnata imobiliário, segundo uma pessoa inteirada dessa iniciativa. A pessoa descreveu o trabalho de pesquisa da oposição sob a condição do anonimato, citando a natureza volátil da história e a probabilidade de futuras disputas legais. A identidade do doador não ficou clara.

A Fusion GPS, dirigida por Glenn Simpson, um ex-jornalista do "Wall Street Journal" conhecido por suas reportagens obstinadas, geralmente trabalha para clientes empresariais. Mas nas eleições presidenciais a firma é às vezes contratada por candidatos, organizações partidárias ou doadores para fazer trabalho político de oposição.

Trump admite que Rússia pode ter hackeado Hillary

UOL Notícias

É trabalho rotineiro, e geralmente envolve criar um grande banco de dados pesquisável de informação pública: antigas reportagens, documentos de processos judiciais e outros dados relevantes. Durante meses, a Fusion GPS reuniu os documentos e montou os arquivos com o passado de Trump nos negócios e no entretenimento, um alvo rico.

Depois que Trump surgiu como o nomeado presumível na primavera, o interesse republicano por financiar a iniciativa terminou. Mas democratas que apoiavam Hillary Clinton ficaram muito interessados, e a Fusion GPS continuou dando os mesmos mergulhos profundos em prol dos novos clientes.

Em junho, o teor da iniciativa mudou de repente. O jornal "The Washington Post" relatou que os computadores do Comitê Nacional Democrata tinham sido invadidos por hackers, aparentemente agentes do governo russo, e uma figura misteriosa chamada "Guccifer 2.0" começou a publicar na internet os documentos roubados.

Simpson contratou Steele, um ex-oficial da inteligência britânica com quem ele já havia trabalhado. Steele, com 50 e poucos anos, tinha servido secretamente em Moscou no início dos anos 1990 e mais tarde foi o principal especialista sobre Rússia no quartel-general do serviço de espionagem britânico MI6, em Londres. Quando ele saiu, em 2009, começou sua própria firma de inteligência comercial, a Orbis Business Intelligence.

O ex-jornalista e o ex-espião, segundo pessoas que os conhecem, tinham opiniões negativas sobre o presidente Vladimir Putin, da Rússia, um ex-oficial da polícia secreta KGB e sobre as táticas diversas que ele e seus agentes de inteligência usavam para difamar, chantagear ou subornar seus alvos.

Como um antigo espião que havia praticado espionagem na Rússia, Steele não estava em condições de viajar a Moscou para estudar as conexões de Trump lá. Então contratou russos para ligar para informantes na Rússia e também fez contato discreto com suas próprias conexões no país.

Steele escreveu suas conclusões em uma série de memorandos, de algumas páginas cada, que começou a entregar à Fusion GPS em junho e continuou pelo menos até dezembro. Então, a eleição tinha terminado e nem Steele nem Simpson estavam sendo pagos por um cliente, mas não pararam o trabalho, que consideravam muito importante. (Simpson não quis fazer comentários para esta reportagem, e Steele não respondeu imediatamente a um pedido de comentários.)

Os memorandos descreviam duas operações russas. A primeira era uma iniciativa de vários anos para encontrar um modo de influenciar Trump, talvez porque ele tivesse contatos com oligarcas russos que Putin queria manter sob vigilância. Segundo os memorandos de Steele, foram usadas uma série de táticas conhecidas: a coleta de "kompromat", material comprometedor como supostas fitas de Trump com prostitutas em um hotel de Moscou, e propostas de negócios interessantes para Trump.

Trump bate-boca com repórter em coletiva

UOL Notícias

O objetivo provavelmente não seria fazer de Trump um agente conhecido da Rússia, mas transformá-lo em uma fonte que poderia dar informações a contatos russos amigos. Mas se Putin e seus agentes pretendiam atrapalhar Trump usando acordos de negócios não o fizeram com muito sucesso --Trump disse que não tem grandes propriedades lá, embora um de seus filhos tenha dito em uma conferência imobiliária em 2008 que "muito dinheiro estava vindo da Rússia".

A segunda operação russa descrita foi recente: uma série de contatos com representantes de Trump durante a campanha, em parte para discutir a invasão do sistema informático do comitê democrata e do presidente da campanha de Hillary Clinton, John Podesta. Segundo as fontes de Steele, envolvia, entre outras coisas, uma reunião no final do verão em Praga (República Tcheca) entre Michael Cohen, um advogado de Trump, e Oleg Solodukhin, uma autoridade russa que trabalha para Rossotrudnichestvo, organização que promove os interesses da Rússia no exterior.

Segundo todos os relatos, Steele tem uma excelente reputação com colegas da inteligência americana e britânica e tinha trabalhado para o FBI na investigação de corrupção na Fifa, o órgão internacional que governa o futebol. Colegas dizem que ele estava agudamente consciente do perigo de que ele e seus sócios estivessem recebendo desinformação russa. A inteligência russa tinha montado uma complexa operação de hacking para prejudicar Hillary, e era possível haver uma operação semelhante contra Trump.

Mas grande parte do que lhe disseram, e foi transmitido à Fusion GPS, era muito difícil de checar. E parte das afirmações que podem ser verificadas parece problemática. Por exemplo, Cohen disse no Twitter na noite de terça-feira que nunca esteve em Praga; Solodukhin, seu suposto contato russo, negou em entrevista por telefone que tivesse encontrado Cohen ou alguém associado a Trump. O presidente-eleito citou na quarta-feira reportagens de que um outro Michael Cohen sem ligações com Trump possa ter visitado Praga e que os dois Cohens podem ter sido confundidos nos relatos de Steele.

Mas a notícia de um dossiê havia começado a se espalhar pelos círculos políticos. Rick Wilson, um agente político republicano que estava trabalhando para um comitê de ação política em apoio a Marco Rubio, disse que ouviu falar disso em julho, quando um repórter investigativo de uma grande rede de notícias o chamou para perguntar o que ele sabia.

No início do outono, alguns memorandos de Steele tinham sido entregues ao FBI, que já estava investigando os laços de Trump com a Rússia, e a jornalistas. Uma autoridade do MI6, cujo trabalho não permite que ele seja citado pelo nome, disse que no final do verão ou início do outono Steele também transmitiu à inteligência britânica os relatórios que havia preparado sobre Trump e a Rússia. Steele estava preocupado sobre o que ouvia a respeito de Trump, e achava que a informação não deveria ficar somente nas mãos de pessoas que desejavam ganhar uma disputa política.

Depois da eleição, os memorandos, ainda sendo complementados por suas investigações, tornaram-se um dos segredos menos secretos de Washington, enquanto repórteres --incluindo de "The New York Times" -- se esforçavam para confirmá-los ou desmenti-los.

A notícia também chegou ao Capitólio. O senador republicano John McCain, do Arizona, ouviu falar no dossiê e obteve uma cópia em dezembro de David Kramer, um ex-oficial graduado do Departamento de Estado que trabalha para o Instituto McCain na Universidade Estadual do Arizona. McCain passou a informação a James Comey, o diretor do FBI.

De modo notável para Washington, muito repórteres de organizações noticiosas concorrentes tinham os memorandos nocivos e maliciosos, mas eles não vazaram, porque o conteúdo não podia ser confirmado. Isso só mudou nesta semana, depois que os chefes da CIA, do FBI e da Agência de Segurança Nacional acrescentaram um sumário dos memorandos, juntamente com informação obtida de outras fontes de inteligência, a seu relatório sobre o ataque cibernético da Rússia durante a eleição.

Agora, depois da mais polêmica das eleições, os americanos estão divididos e confusos sobre em que acreditar a respeito do próximo presidente. E não há perspectiva em breve de uma total clareza sobre a veracidade das afirmações feitas contra ele.

"É um momento notável na história", disse Wilson, o agente político na Flórida. "Em que mundo eu acordei?"