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Como um homem escapou da Justiça após confessar que matou sua mulher

Foto sem data de Mukesh com sua mulher, Geeta - The New York Times
Foto sem data de Mukesh com sua mulher, Geeta Imagem: The New York Times

Ellen Barry

Em Peepli Khera (Índia)

23/08/2017 04h00

Em minha última semana na Índia, fui me despedir de Jahiruddin Mewati, chefe de um pequeno vilarejo para onde viajei uma dezena de vezes para minhas reportagens.

Jahiruddin e eu não éramos exatamente amigos, mas passamos muitas horas conversando ao longo dos anos, falando basicamente sobre política local. Ele não me parecia ter muitos escrúpulos, mas era sincero. Ele desconfiava de minhas intenções, mas me achava divertida, da mesma forma que um cachorro falante pode ser divertido, sem prestar atenção aos detalhes do que eu dizia.

Embora não tivesse educação formal, Jahiruddin era um político hábil, tendo sido eleito recentemente em uma disputada eleição local. Durante nossas conversas, era comum ele engatar discursos inflamados e patrióticos sobre verdade e justiça. O efeito se perdia um tanto por causa de sua síndrome de Tourette, que fazia com que ele soltasse a palavra "pênis" em intervalos regulares.

Pouco tempo depois, alguém me contou sobre um assassinato em Peepli Khera, e percebi que eu tinha de visitá-lo mais uma vez.

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Anjum corta madeira para ser usado como lenha para cozinhar
Imagem: Andrea Bruce/The New York Times

Quinta-feira: um triste rumor

Quando fazia minhas reportagens em Peepli Khera, eu costumava ficar na casa de uma mulher chamada Anjum, que morava perto de uma bomba manual de água, e que portanto servia como uma central de fofocas.

Eu estava descansando ali quando ouvi que uma mulher havia sido morta no ano passado, espancada até a morte por seu marido na frente de pelo menos uma dezena de pessoas.

Anjum disse que os gritos da mulher a acordaram de um sono profundo, e ela foi tateando no escuro até a casa da vizinha. A mulher, Geeta, estava encolhida no banheiro de um vizinho enquanto seu marido batia nela repetidas vezes com um bastão de bambu, ela contou à minha colega Suhasini, que fazia a tradução.

"Eu a arrastei para fora para protegê-la", disse Anjum. "Ninguém estava a protegendo, todos só assistiam".

Mas quando Anjum se afastou, o marido de Geeta, Mukesh, se aproximou de Geeta, que estava encolhida ao lado de uma cama de corda, e bateu na sua cabeça muitas outras vezes. Ela morreu na hora.

Anjum disse que o que a incomodou foi que a polícia havia sido informada sobre o assassinato, mas quase que imediatamente encerrou a investigação, liberando Mukesh algumas horas depois.

Um dia antes de minha visita, Mukesh havia se casado novamente, e desfilava pelas ruas com sua nova mulher na garupa da moto, exibindo-a.

O irmão de Mukesh, Bablu, por acaso estava perto da casa de Anjum, e ele disse que seu irmão havia pego Geeta o traindo, e a matou.

"Ele estava triste", ele disse sobre seu irmão. "Mas então ontem ele arrumou outra. Por que ele ficaria triste?"

Fomos até a delegacia de polícia mais próxima, e um jovem policial, Jahangir Khan, foi enviado para falar conosco.

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O policial Jahangir Kahn
Imagem: Andrea Bruce/The New York Times

A seguir, uma versão resumida de nossa conversa:

Policial: Ela estava dormindo na varanda. Ela acordou para ir urinar. Havia uma escada de madeira, uma escada improvisada de madeira feita de bambu. Ela escorregou quando estava descendo a escada. Ela machucou a cabeça.

Repórter: Mas os ferimentos não sugeriam algo mais violento?

Policial: Quando você é atingido por um bastão, você é atingido em somente um  ponto da cabeça e você morre. Mas quando você cai de uma escada, você não é atingido somente na cabeça. Ela tinha sete ou oito marcas no corpo, o que significa que ela não foi atingida por um bastão, mas sim caiu da escada.

Repórter: Não parece normal ficar com um ferimento desses na cabeça caindo de uma escada. Você quebraria o pescoço.

Policial: Quando você cai da escada, fica com machucados no corpo todo.

Repórter: Os vizinhos não lhe disseram que ela foi espancada?

Policial: Alguns dos vizinhos disseram que o marido a havia matado. Mas a mulher estava bem. Ela era forte, bem alimentada e feliz, e ela tinha dois filhos. Ela era saudável, cheinha, como você.

Pouco depois, o policial disse que não tinha mais tempo para falar sobre o caso. Antes de ir embora, ele se virou para mim e disse: "Este é o truque de países estrangeiros como o seu. Você vai escrever alguma coisa. As pessoas vão ler e dizer: 'Esse país só vai progredir daqui a 100 anos'".

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Jahiruddin Mewati, chefe do pequeno vilarejo Peepli Khera
Imagem: Andrea Bruce/The New York Times

Sexta-feira: Visitando o assassino

Esposas novas ocupam o degrau mais baixo na hierarquia da família, o que significa que quando há pouca comida, as mulheres jovens não comem, mesmo que estejam grávidas. As regras das castas proíbem que elas se sentem em cadeiras ou em camas se houver pessoas de um nível mais alto presentes, o que é o caso na maioria das vezes, então as entrevistei da forma que sempre fiz: comigo sentada em uma cama, e elas agachadas aos meus pés, olhando para mim a partir do chão.

Quando perguntei sobre o assassinato de Geeta, a nora mais velha respondeu em voz baixa, porque sua resposta não se alinhava com o consenso do vilarejo.

"Foi errado", ela disse. "O que vai acontecer agora se meu marido bater em mim?"

Encontramos Mukesh em sua varanda com sua nova mulher. Meu coração disparou enquanto subíamos as escadas, mas foi à toa: quando lhe perguntamos se ele havia matado sua mulher, ele nos contou com detalhes como havia feito.

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Uma mulher cozinha em sua casa em Peepli Khera
Imagem: Andrea Bruce/The New York Times

Sábado: De volta à delegacia

Na minha linha de trabalho, poucas coisas são tão gratificantes quanto pegar alguém mentindo. Voltamos à delegacia no dia seguinte, com uma gravação da confissão de Mukesh em meu celular.

O policial pareceu um pouco ansioso. Ele disse que não queria falar conosco na delegacia, e nos convidou para ir tomar um chá do outro lado da rua. Mas o lugar estava tomado por meia dúzia de policiais que faziam uma pausa, então ele nos levou até uma apertada oficina mecânica de tratores, onde nos sentamos de frente um para o outro.

Fazia muito calor. Enquanto contávamos para ele o que havíamos descoberto no dia anterior, o policial enxugava sua testa com um lenço. Depois de um ou dois minutos, ele falou.

"Quando você recebe informação de qualquer tipo", ele disse, "você vai e investiga. Existem dois lados para toda história. Precisamos supor que ambos os lados estejam falando a verdade. Mukesh nos contou que ela caiu da escada. Também falamos com a família da garota. O que a mãe nos passou por escrito é que sua filha caiu da escada".

Pelos 45 minutos seguintes, fiz a ele a mesma pergunta de várias formas diferentes.

Em determinado momento houve uma espécie de inflexão na conversa. Estávamos sentados em silêncio, depois de termos esgotado as formas de reformular nossas posições. Ele olhava para a parede dos fundos da oficina e, completamente do nada, ele disse algo sobre Mahatma Gandhi.

"As pessoas penduram o retrato de Gandhi na parede aqui", ele disse, "mas elas não seguem as regras de Gandhi". Perguntei se ele gostava de ser policial, e ele fez que não com a cabeça.

Então ele pediu uma carona de volta para casa. Pensei que ele poderia só estar interessado em andar em uma van com ar-condicionado --as pessoas aqui são tão pobres, que ele poderia não ter outra oportunidade--, mas assim que saímos com o carro, ele começou a falar.

"Vou contar para vocês, foi um assassinato", ele disse.

Ele disse que a família de Mukesh havia subornado os oficiais superiores da delegacia, mas que isso não teria acontecido sem um esforço ativo do chefe do vilarejo, Jahiruddin Mewati, para convencer a mãe viúva de Geeta, uma operária diarista de um vilarejo a quase 50 km de distância, a retirar as acusações de assassinato.

"Eu me senti mal com aquilo", ele disse. "É por isso que quero sair deste emprego. Noventa e nove por cento dos casos são tratados assim. Fico muito bravo. Sou uma pessoa honesta. Posso lhe mostrar quatro caras aqui que conseguem estuprar uma mulher tão facilmente quanto arrancam as penas de um pássaro, mas eles nunca são presos".

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Mulher corre em estrada de Peepli Khera
Imagem: Andrea Bruce/The New York Times

Domingo: O chefe explica

Então fui parar de volta no quintal de Jahiruddin, armada de um arquivo cheio de provas de que ele havia infringido a lei.

Isso mudou a dinâmica de nossa relação. Coloquei meu celular sobre a mesa à sua frente, para que ele pudesse ver que eu estava gravando. A certa altura, ao nos ouvir conversando, seu filho tentou alertá-lo de que ele estava se incriminando, mas Jahiruddin não se importava. Ele nos disse que estava orgulhoso de enterrar o caso.

E não porque acreditasse que Geeta merecia morrer ou que seu marido merecia escapar de uma punição. Era por uma questão mais prática. A família estendida de Mukesh controlava 150 votos; Jahiruddin havia vencido sua última eleição por 91 votos. Um caso de assassinato teria sido uma mancha em sua casta, e ao intermediar o acobertamento, ele havia realizado um serviço particularmente valioso para uma clientela eleitoral importante. Isso pode ajudá-lo a ser reeleito algum dia.

"Na Índia, não existe voto em nome do desenvolvimento", ele disse. "Na Índia, não existe voto para se fazer algo de bom. O voto é em nome da casta, da família, da comunidade. E então 10% das pessoas dirão: 'Ele fez algo de bom para mim'".