Moradores recorreram ao Estado Islâmico para resolver crimes e rixas nas comunidades
A cena do crime foi a barraca nº 200 em um mercado a 13 km ao norte de Mosul, no Iraque. Era lá que Zaid Imad Khalaf, 24, ganhava a vida vendendo frangos. E foi lá que um soldado do Estado Islâmico chegou e apontou para a galinha mais gorda. "Aquela", disse ele.
Imad matou a ave, a depenou e pesou, então pediu os 8.000 dinares devidos (cerca de R$ 30). Foi então que os problemas começaram. "Quando ele foi tirar o dinheiro do bolso, disse que só tinha 4.000 dinares e que me pagaria o restante no dia seguinte", lembrou Imad.
Normalmente, a história teria terminado aqui, com um homem pobre sendo lesado por um mais poderoso.
Uma semana depois do incidente, porém, Imad fez algo que poderia parecer tolice quando os governantes da cidade têm a fama de brutos incontíveis: ele abriu uma queixa pelo dinheiro que faltava, na delegacia islâmica da cidade. No dia seguinte, o combatente do EI correu para pagar a quantia devida.
Foi uma solução rápida, simples e eficaz para um problema menor, que provavelmente não teria sido tratado antes da chegada dos militantes.
Em uma versão terrorista da escola de policiamento da "janela quebrada", o EI processou agressivamente os crimes menores nas comunidades que conquistou, ganhando pontos entre os moradores que estavam habituados a pagar propina para ter a ajuda da polícia.
Quase 400 registros e arquivos de investigações abandonados em uma delegacia do EI e fornecidos ao "The New York Times" sugerem que os moradores recorreram ao grupo para ter ajuda com os problemas menores.
Os documentos mostram que o EI estava disposto e, muitas vezes, até ansioso para se envolver nos detalhes sórdidos da vida cotidiana das pessoas, e, por outro lado, centenas de pessoas confiaram neles para resolver com justiça suas rixas, mesmo as mais triviais.
Os registros estão contidos em centenas de arquivos recuperados em um grupo de prédios em Tel Kaif, que abrigava a força policial islâmica do grupo, a Shorta Islamiya. A maior parte dos papéis foi descoberta por forças de segurança iraquianas que liberaram a área no início de 2017. Elas os entregaram ao "The New York Times" para que seu conteúdo fosse divulgado ao mundo.
Para garantir a autenticidade dos documentos, o "Times" mostrou uma seleção deles a seis analistas independentes que estudam o EI, entre os quais Mara Revkin, da Universidade Yale, Aymenn Jawad al-Tamimi, do Fórum do Oriente Médio, e uma equipe do centro de combate ao terrorismo da academia militar de West Point.
Todos os comerciantes que vendiam seus produtos a crédito recorreram ao governo do EI quando os clientes deixavam de pagar. Eles pediam reembolso por uma vaca, uma ave, carne, trigo, legumes, uma troca de óleo e um aquecedor. Um deles abriu uma queixa por 150 metros de fio elétrico que não lhe pagaram.
Agricultores pediam a investigação de colheitas danificadas por gado. Havia um pedido de indenização por melões esmagados por um carneiro perdido. Outro dizia que seu campo recém-plantado havia sido pisoteado por 21 vacas.
Às vezes, os relatos pareciam registros policiais de qualquer cidade pequena. Havia batidas de carros, roubos, brigas de socos e dinheiro roubado da bolsa de uma mulher deixada em um carro destrancado.
A Justiça era rápida e eficiente, em geral porque ninguém queria se arriscar a ser punido pelas mãos dos militantes. Mas o fato de que centenas de civis abriram queixas, inclusive contra combatentes do EI que os haviam enganado, sugeria que, pelo menos, alguns iraquianos acreditavam que o grupo terrorista lhes faria justiça.
Até moradores que sofreram abusos nas mãos dos militantes lhes deram crédito por seu policiamento, dizendo que para disputas não religiosas eles eram não somente justos como também dispostos a adentrar problemas que poderiam ser descartados pela maioria das autoridades.
Frustrado por ser repetidamente repelido pelo combatente, Imad, o vendedor de frangos, rumou para a delegacia da polícia islâmica na rua Al Bareed.
A delegacia ficava em uma sala quadrada, de cerca de 6 m x 6 m. O delegado encarou Imad do outro lado de uma grande mesa. Sob um grande ventilador de plástico chinês que cortava o ar espesso, ele ouviu a reclamação de Imad. Então pegou um formulário com o nome do grupo terrorista, e no campo "Caso número" anotou "329".
Então ele preencheu a data, 22 de janeiro de 2016, domingo, 10h, antes de registrar os detalhes da denúncia: "O queixoso (Zaid Imad Khalaf) se queixa de que o acusado (Bariq) lhe deve (4.000 dinares) depois que lhe comprou uma galinha".
Então ele redigiu um mandado para que o combatente do EI se apresentasse na delegacia. "Advertência: caso o senhor não apareça, medidas necessárias serão tomadas para puni-lo", dizia. O delegado enviou um de seus agentes, segundo Imad, para entregar a intimação.
O combatente compareceu no dia seguinte e pagou imediatamente, segundo um recibo.
Ganhando amigos e influenciando pessoas
Uma das prioridades do EI quando capturava uma nova área era conquistar a confiança e a cooperação dos civis, cujos trabalho e boa vontade eram essenciais para seu Estado, disse Revkin. Uma das maneiras de fazer isso era prover justiça ágil, que é uma das funções mais básicas de qualquer Estado e algo que fazia grande falta sob o governo do Iraque.
"O EI pareceu reconhecer desde o início que poderia explorar as demandas locais por dignidade escutando as queixas e os problemas da população e oferecendo soluções rápidas", disse Revkin, que entrevistou mais de 200 pessoas que viveram em áreas controladas pelo EI.
Hoje na prisão, o "emir" da delegacia na aldeia de Sahaji confirmou que o objetivo era conquistar a população. Em uma entrevista na cadeia, ele lembrou que investigou agressivamente o caso de um lojista a quem devia o equivalente a R$ 17.
"Sabíamos que se conseguíssemos distribuir justiça conquistaríamos o coração da população", explicou ele.
Quando a notícia se espalhou, os moradores começaram a aparecer com queixas sobre empréstimos e serviços não pagos que datavam de muito antes de o EI chegar ao poder.
Em sua loja em uma faixa de asfalto perto da delegacia, Ahmed Ramzi Salim mantém registro do dinheiro que lhe devem. Os clientes pediam crédito habitualmente para comprar os ovos que ele oferecia em uma bandeja aberta, arroz e farinha vendidos a granel.
Salim disse que abriu três queixas na época em que o EI governou a cidade. Antes que os militantes assumissem o poder, lembrou, ele lutou durante mais de um ano para receber os US$ 136 devidos por um açougueiro que comprava em sua loja. "Era como se eu estivesse lhe pedindo esmola", explicou ele.
Assim que o Estado Islâmico se envolveu, o problema terminou. O homem apareceu quatro dias depois para saldar a dívida.
"Era eficiente porque as pessoas tinham medo deles", disse Salim. "Se você soubesse que seria chamado à delegacia do EI, faria tudo para evitar.
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