Arthur Schopenhauer escreveu que a ignorância só degrada o homem quando ela se encontra em companhia da riqueza. Munida de bastante ignorância e com a resiliência daqueles que flertam com a pindaíba — o que me garantia a extrema-unção do filósofo alemão —, cheguei à festa de abertura do 10º Fórum Jurídico de Lisboa, na última segunda-feira (27), mais um evento com assinatura do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (que estava com covid-19 e não compareceu), no restaurante Ohka, no bairro de Santos, em Lisboa. A 123 euros por cabeça, tinha-se direito à vista magnífica do Tejo, música bate-estaca tocada por um DJ de óculos escuros, petiscos, jantar, além de coquetéis e vinho servidos a rodo. Quase três anos longe do Brasil, acompanhando o noticiário com distância higiênica, haviam me privado de alguns personagens que passaram a povoar corações e mentes dos brasileiros de bem. Muitos deles estavam na festa. Eu, na minha suprema ignorância, não conhecia nenhum. Estava sentada num canto com bom ângulo para a Ponte 25 de Abril e passagem estratégica de garçom, quando um jurisconsulto da área de compliance veio puxar papo. Dois minutos depois e a descoberta de uma dezena de colegas em comum, ele passou a me guiar por um mundo desconhecido. "Aquele é o ministro da Saúde", "aquele é o embaixador brasileiro", "aquele é o aspone do ministro tal", "o de cabelo branco bebendo é ministro também", "esse aqui é o presidente do Banco Central, que falou na palestra hoje que o Brasil nunca esteve tão bem", "o de chapéu é o Adams, ex-Advocacia-Geral da União da Dilma, o outro é o Kakay, advogado de Brasília, e o ministro Barroso, do STF...". Aí, eu o interrompi, já eram da minha época. Também fazia parte do meu repertório Lucilia Diniz, ex-grupo Pão de Açúcar, dona de uma linha de produtos de dieta, casada com Luiz Carlos Trabuco, ex-presidente do Bradesco, que comia muitos salgadinhos, enquanto ela recusava todos, mas bebia mojito. "Mas, de todos eles, o mais importante é aquele ali", disse-me o advogado, apontando um homem corpulento, atarracado, rodeado por outros muitos homens de terno, que pendiam sobre ele como uma floresta de bambu. "É o homem secreto do Bolsonaro. Manda muito", completou. Tratava-se do almirante Flávio Rocha, Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Seu gabinete, no terceiro andar do Palácio do Planalto, é colado ao do presidente. Nos últimos anos, estreitou os laços com Bolsonaro, que conta com ele quando quer colocar algum plano em curso ou ajeitar o desajeitado. Tudo depende da perspectiva. Em Schopenhauer, o mundo como vontade e representação. Foi assim quando foi chamado para substituir Fabio Wajngarten, na Secretaria de Comunicação do governo. É assim quando tem carta-branca para negociar a política externa do país no exterior, passando por cima do Itamaraty. Quando pedi informações sobre o almirante a uma cobra venenosa do colunismo político nacional — que segura o cachimbo com a mão esquerda —, ele me disse que só o conhecia por achá-lo um "sósia do Kim Jong-Un", o ditador da Coreia do Norte. Depois, explicou-me que "na verdade, ninguém o conhece bem. Sabe-se que vive no mundo das intrigas palacianas e viaja mais do que o chanceler". Desde que tomou posse, há pouco mais de um ano, o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, fez 19 viagens ao exterior. O almirante, 21. | Público no 10º Fórum Jurídico de Lisboa, realizado na última segunda-feira (27) no restaurante Ohka, em Lisboa | Imagem: Cláudio Noy/Divulgação |
Fui me apresentar ao "comandante", como me foi dito que eu deveria tratá-lo. A menção "colunista do UOL" provocou a debandada de três dos oito indivíduos à volta. Rocha não estava nem aí. E começamos a conversar. Ele disse ter acabado de voltar de uma viagem de vinte dias a onze países do Oriente Médio e do Leste Europeu. Depois, ficou menos de 24 horas em Brasília e embarcou para os Estados Unidos para acompanhar Bolsonaro na Cúpula das Américas. Duas semanas depois, estava aqui em Lisboa. "O presidente me mandou ajudar o Paulo Guedes. Quem sou eu para ajudar o Paulo Guedes, né? Mas o presidente pediu, e eu faço", disse. Perguntei se o ministro da Economia não estava queimado. No exterior, ele era uma piada. "Naaada!', disse Rocha. Contou ter recebido a missão de ir para países em que achava ter futuro para investimentos. "Porque o foco do Bolsonaro é gerar emprego sem ser do Estado", comentou. Segundo ele, chamou 50 empresários brasileiros, um avião de carga da Força Aérea foi adaptado para virar um voo "de econômica" e se mandaram para as arábias. "Daqui a dois meses, você vai ver a enxurrada de dinheiro que vai chegar aqui", disse. Em suas contas, "trilhões, trilhões. Eles estão desesperados para botar o dinheiro deles em algum lugar". O almirante disse que o interesse no país é enorme. "Todos esses lugares veem o Brasil como terra prometida. Não temos essa frescura de alinhamento com OTAN, bloco comunista, essas coisas", afirmou. O fato de os supostos investimentos chegarem às vésperas da eleição faz diferença? "Ah faz!", comentou, abrindo um largo sorriso. Segundo ele, Bolsonaro se reelegerá. E se perder, o que acontece? "Se perder, em dois anos, a desgraça será muito grande. Porque o Bolsonaro estava fazendo as coisas que o Temer começou, tipo reforma trabalhista, teto de gastos, o Brasil estava caminhando. E Lula vai parar tudo o que ele fez. Vai desfazer item por item. Eu não admito a mídia apoiar um ladrão desses", disse, se referindo ao candidato do PT. Ele é da opinião que a "mídia brasileira afundou o país". Enquanto bebericava uísque aguado, disse entender que a mídia internacional queira "ferrar o Brasil", mas "a mídia brasileira parece que não tem filho brasileiro, mãe brasileira, avós brasileiros. O que ganham com isso?". Passou a comparar os dois candidatos que lideram as pesquisas eleitorais. Disse que o presidente não rouba, que é um "cara puro", que o problema dele é de "comunicação". Que nunca viu sinal de corrupção no governo porque "quando o presidente chama um ministro, chama também alguém da PF, do Ministério Público, a sala está sempre cheia". Perguntei sobre o senador Flávio Bolsonaro, o 01, e sua casa de 6 milhões de reais. "Aquela casa foi financiada, pelo amor de Deus. Não é nada cara!". Em sua opinião, Lula "rouba por hábito". | Imagem: Cláudio Noy/Divulgação |
Um homem de cabelo escovinha e casaco de náilon preto se aproximou. O almirante se dirigiu a ele como "meu ministro predileto". A minha ignorância era inadmissível. "Ah, desculpe-me, mas o senhor é ministro do quê mesmo? Eu moro aqui e não conheço mais ninguém no governo", disse. Ele foi rápido. "Do Meio Ambiente. Mas, no Brasil, ninguém me conhece também, não". Perguntei ao ruralista Joaquim Álvaro Pereira Leite, o ministro, sobre as investigações do assassinato do indigenista Bruno Araújo e do jornalista inglês Dom Philips, criticadas em todo mundo pela demora e enrolação. "Em dez dias, o governo prendeu quem os matou. Agora vai chegar no mandante. A investigação está andando", disse-me. Comentei que as informações eram conflitantes, imprecisas, e a pressão internacional era forte. O ministro passou a dizer que o caso era exclusivamente ligado ao tráfico de drogas. "Internacionalmente é europeu consumindo droga." Disse que naquela região não há crime ambiental, nem de mineração ou desmatamento, por se tratar de uma das mais isoladas do país. Que também há pouquíssimo tráfico. O que teria acontecido, disse ele, é que se tratava de um corredor do tráfico, que liga o Peru ao Brasil. "Essa rota tem uns 40 anos", completou o almirante. De repente, ele começou a cantarolar: "A correnteza está levando aquela flor....Lálálá?" E completou: "Só que eles usam essa correnteza, essa locomotiva para transportar droga". O ministro acrescentou que os pescadores que os mataram "não mataram a troco de nada" e, portanto, há um mandante ligado ao tráfico internacional que será preso em breve. Quando ia insistir em outra pergunta, o ministro virou as costas e saiu. Foi quando percebi que um fosso havia sido criado ao nosso redor. Não havia vivalma à nossa volta. Era como se eu o almirante emanássemos alguma doença contagiosa. "É porque você é jornalista!", disse ele, se esborrachando de rir. Rocha chama os interlocutores — homens ou mulheres — de "cara", "bicho", "amigo". E insiste: "Me chama de Flávio". Dá gargalhadas monumentais mesmo com piadas pedestres, o que lhe confere um ar simpático e bonachão. Um garçom colocou um bandeja de salgadinhos à frente do almirante. O prato tinha forma de uma paleta de pintura, e o rapaz a equilibrava com a força do polegar que saía de um buraco na madeira. "Aiiiiii, não!!!", gritou o garçom, quando Rocha lhe puxou o dedão, achando se tratar de uma coxinha. Houve uma gargalhada geral, que durou minutos. Caía a noite, o DJ aumentara o volume do bate-estaca, procuravam-se em vão lugares nas mesas para o jantar, as gargalhadas do ambiente impediam qualquer conversa. Era hora de ir embora. De longe, acenei para o almirante, que estava novamente cercado de engravatados. Ele deu adeuzinho e fez o sinal de Hang Loose, encostando no ouvido a mão com o polegar e o mindinho em riste — vestígios de uma época distante, quando todo mundo sabia que isso significava "liga aí depois". PUBLICIDADE | | |