Cidadão tem que se responsabilizar pelas escolhas feitas nas urnas
Os nascidos em 2000 poderão votar nas eleições deste ano numa democracia parida da liberalização iniciada pelo regime militar. Quando os atuais jovens de 16 anos nasceram, havia apenas 15 anos que a ditadura acabara. São latentes em nosso entorno seus entulhos autoritários.
A Constituição de 1988 traz os germes da ditadura –vide os artigos 142 e 144, inexistentes em várias democracias, que dão prerrogativas aos militares para agirem sobre a ordem politica e social do país. E isso para não falar que o Congresso Nacional e a sociedade brasileira são povoados por uma fauna de saudosistas do regime militar. O discurso do deputado Jair Bolsonaro, na sessão da Câmara dos Deputados que abriu o processo de impeachment contra a presidente Dilma, reverenciando a memória de um torturador, é um plangente exemplo disso. Nossa democracia repousa sob escombros de um regime que tinha a tortura como política de Estado.
Como viver em uma democracia tão frágil? Como respeitar uma eleição se os eleitos não pretendem cumprir as funções delegadas pelos eleitores? Como o jovem eleitor quererá participar sabendo que suas decisões poderão ser desfeitas por golpes travestidos de impeachment? Por que valorizar um sistema que pode desmanchar decisões tomadas nas urnas? 54.501.118 eleitores decidiram que Dilma Rousseff nos governaria entre 2015 e 2018.
Como eles se sentem ao ver um grupo de parlamentares corruptos, conservadores, oportunistas, autoritários e pateticamente irresponsáveis processando a destituição da presidente eleita democraticamente e que não cometeu crime algum?
Eleições permanentes e alternância no poder são essenciais. Mas, o cidadão tem que se responsabilizar pelas escolhas feitas nas urnas. Não adianta fazer discursos enfurecidos diante dos escândalos de corrupção e depois dar ao corrupto o conforto de ter um mandato e foro privilegiado.
Eleições em profusão pouco adiantam se não estamos dispostos a cumprir os mecanismos institucionais que permitem que os que descumprem suas funções (e as leis) sejam responsabilizados com pressupostos penais que causem punibilidade. Por que supomos que esse revezamento de nomes e siglas nos cargos governamentais é solução única para nossos males? Por que nos contentamos com tão pouco?
Nosso processo eleitoral evoluiu com dificuldades. Em 1960, na última eleição presidencial antes do golpe de 1964, 6 milhões de eleitores votaram. Na eleição seguinte, 29 anos depois, foram 120 milhões de eleitores. Crescíamos quantitativamente enquanto desaprendíamos a votar. Já em 2004, os eleitores entre 16 e 25 anos foram cerca de 25 milhões. Quantos destes amadureceram para intervirem no processo eleitoral e para atentarem para a responsabilidade de se eleger um reconhecido corrupto?
O governo e o sistema representativo devem ter o consentimento do cidadão para serem legítimos. Essa anuência vem do contrato social, materializado no sufrágio universal, onde os cidadãos dão autoridade para que leis sejam criadas. Em “Capitalismo, Socialismo e Democracia” o economista e cientista político austríaco Joseph Schumpeter se refere à democracia como um método político por onde se escolhe os que decidem e que dá ao cidadão o poder de substituir um governo por outro para que ele próprio se proteja dos riscos dos escolhidos se tornarem uma força inamovível. Dizia ele: “A democracia significa apenas que o povo tem a oportunidade de aceitar ou recusar os homens que a governam”.
Devemos nos contentar com isso? Não, é insuficiente! Mas, se não consolidarmos nem isso, como avançaremos para um sistema que contemple aspectos mais amplos do funcionamento de um Estado que seja a um só tempo legal e legítimo, e, portanto, de direito e democrático?
Hoje, ditaduras parecem coisa do passado e eleições se sucedem a cada dois anos. Falta-nos ter a política como o que orienta as relações sociais e uma mentalidade democrática que substitua essa pretoriana visão de mundo que temos. Mas, isso não se faz apenas com discursos. Eleições podem ser uma via para isso. Se é ruim conviver com elas, o que dirá sem?
Pela educação, nosso passado autoritário precisa ser revisto. Na ditadura, Estudos Sociais, Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política do Brasil e Estudos dos Problemas Brasileiros constavam nos currículos escolares para afirmarem os interesses e a ideologia do regime militar. Mas, paradoxalmente, essas matérias eram subvertidas por professores que driblavam a censura e o medo para ensinar “assuntos diferentes”. Foi assim que muitos, como eu, puderam ter acesso à filosofia, política, história, sociologia.
Os que se lembrarem disso são menos jovens do que esses que vão votar pela primeira vez e podem contribuir num processo de educação política. Se não estamos em uma ditadura e temos liberdade de expressão, por que não usar espaços devidos para educar para a cidadania que ensina para que servem as instituições políticas? O que é a República, a Federação, a Constituição, os Poderes e suas funções, as eleições e os partidos, os direitos e os deveres, o papel da imprensa. É preciso munir o jovem para que ele entenda a democracia e possa valorizá-la como algo útil para sua existência.
No século 20 vivemos 36 anos sob ditaduras, sem contar os anos nos quais vestígios de democracia coexistiam com uma couraça de autoritarismo. Desde a proclamação da República, ainda não tivemos mais de 35 anos contínuos de democracia sem que ditaduras e autoritarismos de toda sorte solapem as instituições. Do fim do regime militar, em 1985, até aqui, ainda somamos menos anos do que os vividos sob as duas ditaduras do século 20.
Nossa jovial e festiva democracia eleitoral ainda tem muito que evoluir. É preciso ter instituições responsáveis com cidadãos respeitados em seus direitos e igualmente responsáveis. Temos que nos submeter às incertezas do jogo eleitoral democrático. Do contrário, seguiremos nos perguntando se realmente devemos defender a democracia ou, dito de outra forma, se não seria melhor vivermos em uma ditadura.
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