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Porta dos Fundos: Não cabe ao Judiciário o papel de babá, diz promotora

Cena de A Primeira Tentação de Cristo, especial de Natal do Porta dos Fundos feito para a Netflix (Divulgação)  - Divulgação
Cena de A Primeira Tentação de Cristo, especial de Natal do Porta dos Fundos feito para a Netflix (Divulgação) Imagem: Divulgação

Bárbara Luiza Coutinho do Nascimento*

09/01/2020 16h28Atualizada em 09/01/2020 16h28

Liberdade de expressão: direito de fácil definição e de difícil concretização. Concordar com o que agrada aos nossos ouvidos e está de acordo com nossos valores e visões de mundo é fácil. Mas os limites da liberdade de expressão são testados quando somos demandados a conviver e aceitar o diferente, ou seja, aquilo de que discordamos ou até mesmo que nos causa repulsa.

A liberdade de expressão é um direito fundamental previsto em nossa Constituição. Não é um direito absoluto, e deve ser ponderado com outros direitos fundamentais tão importantes quanto, como a honra, a privacidade, a isonomia e até mesmo, porque não, a liberdade religiosa.

É por tal motivo que o discurso de ódio é vedado no Direito brasileiro. De acordo com jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão não permite a propagação de mensagens, gestos e símbolos de ódio contra grupos religiosos. O humor ou sarcasmo, contudo, não integram o conceito de discurso do ódio.

Certo é que nos últimos anos as discussões judiciais sobre os limites da liberdade de expressão e eventual censura no Brasil têm se voltado a três temas: política, pornografia e religião.

Quanto ao primeiro tema, basta citar as discussões jurídicas sobre a legalidade da divulgação de informações "hackeadas" por sites jornalísticos, os quais invocam o interesse público para justificar a divulgação, bem como defendem o sigilo da fonte.

Quanto ao segundo tema, basta citarmos o recente caso da Bienal do Livro no Rio de Janeiro, no qual o prefeito Marcelo Crivella, alegando tutela do direito de crianças e adolescentes, determinou o recolhimento de uma revista em quadrinhos que mostrava dois homens se beijando.

E quanto ao terceiro tema, o assunto da moda é o caso do vídeo lançado no serviço de streaming Netflix intitulado "Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo", que retrata Jesus Cristo como homossexual. Ou seria este, na verdade, um exemplo para o segundo tema?

Juristas norte-americanos, tão afetos a discutir liberdade de expressão desde os bancos da graduação, sabem que levar tais assuntos a juízo tende a gerar uma maior publicidade para o que se quer censurar. Em outras palavras, quando o Judiciário é chamado a intervir em assuntos polêmicos ligados à liberdade de expressão, a publicidade gerada pela tentativa de censura gera maior visibilidade para a manifestação de pensamento que se quer ver censurada. Aliás, foi exatamente isso que aconteceu no episódio da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, no qual o livro objeto da tentativa de censura se esgotou.

Não podemos esquecer que a liberdade de expressão é uma pedra de toque do nosso sistema de garantias constitucionais.

Liberdade de expressão não é apenas uma garantia minha ou sua, caro leitor, mas de toda a sociedade. Se censurarmos uma ideia certa, todos perdemos. Se censurarmos uma ideia errada, perdemos a oportunidade de aprender com o erro. Quando algo errado é dito, é na discussão e explicitação do equívoco que a melhor compreensão acerca da verdade é alcançada. É na contraposição de ideias que evoluímos como sociedade e encontramos valores compartilhados.

A maturidade democrática de um país se mede pelo pluralismo de ideias e pelo respeito à diferença. Política, pornografia e religião testam os limites da liberdade de expressão porque testam valores tradicionais arraigados na nossa sociedade.

Nesse cenário, cabe ao judiciário limitar abusos, mas não cabe ao judiciário escolher sobre a prevalência de uma visão de mundo em detrimento de outras, forçando uma igualação de pensamentos.

Quanto à política, omitir informações de interesse público significa negar a verdade ao público.

Quanto à pornografia, a relação sexual é vista como cercada de tabus sociais em vez de ser tratada como uma questão referente à intimidade das pessoas em um espaço que, desde que consentido e entre pessoas maiores e capazes, deveria ser imune à interferência estatal.

Por fim, quanto à religião: a Bíblia nada mais é do que uma pauta de valores. Ocorre que esta pauta foi substituída, em nossa sociedade laica, pela Constituição da República, esta inequivocamente democrática e igualitária, e que optou por sedimentar a liberdade de expressão como direito fundamental.

Por tais motivos, entendo juridicamente equivocada a decisão judicial proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em 8/1/2020 que determinou a exclusão do vídeo "Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo" do serviço de streaming Netflix. A decisão assim dispôs:

"Por todo o exposto, se me aparenta, portanto, mais adequado e benéfico, não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã, até que se julgue o mérito do Agravo, recorrer-se à cautela, para acalmar ânimos, pelo que CONCEDO A LIMINAR na forma requerida."

Entendo que a decisão incorreu em três grandes equívocos de ordem teórica. Inicialmente, grupos sociais majoritários não necessitam de defesa pelo judiciário. A maioria se defende pelo voto. Quem precisa da tutela do judiciário são grupos minoritários, que espelham visões e entendimentos divergentes: por isso a doutrina jurídica diz que o papel do judiciário é contra-majoritário.

Em segundo lugar, argumentos paternalistas não devem ser admitidos em uma sociedade democrática. Não cabe ao judiciário assumir o papel de "Estado babá" ("nanny state") e querer proteger seus cidadãos do livre debate de ideias, tratando-os como eternas crianças incapazes de discernirem entre o certo e o errado e de formarem sua própria opinião.

Por fim, na esfera pública, apenas argumentos de razões públicas podem ser tolerados. Isso significa dizer que o judiciário de um Estado laico não pode escolher uma visão de mundo (religião católica) ao custo de silenciar todas as outras, valendo-se de argumentos morais baseados nessa doutrina escolhida.

O papel de um Judiciário laico, plural e democrático é de não cercear a liberdade em casos onde haja desacordo moral razoável. Deve ele deixar que os cidadãos formem seu próprio convencimento. Se de fato um livro ou um vídeo forem tão ofensivos à maioria da sociedade brasileira, deixemos que o livre mercado se encarregue de seu fracasso. É irônico e trágico que direitos fundamentais sejam utilizados para censurar ideias, estejam elas em sites, livros ou filmes.

*Bárbara Nascimento é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em teoria e filosofia do direito pela Uerj. Cursa o mestrado em direito da tecnologia da informação na Universidade de Edimburgo, na Escócia.