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Operações policiais no Rio revelam a falência moral do país

Moradores do Complexo do Alemão levam corpos e feridos para unidade de saúde após tiroteio - REGINALDO PIMENTA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO
Moradores do Complexo do Alemão levam corpos e feridos para unidade de saúde após tiroteio Imagem: REGINALDO PIMENTA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO

Renato Sérgio de Lima

24/07/2022 04h00

Tenho que reconhecer que desde a última quinta-feira (21), quando uma operação conjunta das polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro provocou 17 mortes, no Complexo do Alemão, estou tomado por um sentimento amargo de derrota civilizatória da agenda em defesa da vida.

E se eu, homem, branco, de meia-idade, com doutorado e morador de um bairro de classe média de São Paulo sinto-me assim, não consigo nem conceber a dor e a sensação de abandono à própria sorte ao qual estão submetidas milhões de pessoas, quase todas negras, que moram nas comunidades fluminenses e nos demais territórios do país subjugados pela violência e pelo domínio armado.

Num país de povos dizimados, morte rende votos

Essas palavras só podem ser de solidariedade e empatia, pois nunca conseguirão traduzir o que sentem na pele aqueles diretamente sujeitos à crueldade e à falência moral por trás de opções político-institucionais que exploram eleitoralmente o pânico e a violência.

Sim, é preciso assumir que, no Brasil, a morte rende votos e significa poder para políticos e para instituições que precisam reforçar autonomia diante do controle civil de seus atos.

A história política e social do país é a história de povos dizimados e corpos vilipendiados.

E, sim, também é preciso assumir que procurar se contrapor aos discursos radicalizados de ódio e culto à violência tem se mostrado uma tarefa bastante árida e dura. Pessoas, entidades e movimentos sociais que defendem direitos humanos tornaram-se alvo de sórdidas campanhas difamatórias e são vistas como a causa da criminalidade. Visões cínicas e covardes preferem culpar quem tenta mudar pacificamente a realidade.

Defender a vida e a segurança não deveria ser uma "aventura perigosa".

Políticos, mesmo candidatos que se consideram de centro esquerda, evitam contrariar as polícias. Mesmo que seja para falar o óbvio. De que segurança pública não pode usar dos mesmos métodos das milícias e das facções e deve estar submetida a rígidos mecanismos de controle e supervisão da atividade policial.

Falar da importância de um órgão de coordenação das polícias fluminenses, como a secretaria de segurança, é um exemplo de tema tabu que nenhum dos candidatos mais bem posicionados nas pesquisas ousa se comprometer.

Liberdade duplamente roubada

Se as comunidades já haviam sido sequestradas pelo domínio armado das facções e das milícias, o fato é que a liberdade de milhares tem sido duplamente roubada pela decisão de as polícias as enfrentarem em campo aberto com a justificativa da urgência da morte de alguns.

Mesmo a Rússia tem evitado operações em áreas urbanas de Kiev na atual guerra com a Ucrânia diante dos riscos de baixas civis.

À exceção dos políticos hipócritas, há justificativa moralmente aceita para as mortes como as de Letícia Marinho Sales, Gabrielle Ferreira da Cunha, Kathlen Romeu, Evaldo dos Santos Rosa ou as crianças Kevin Lucas dos Santos Silva, de 6 anos, e Esther Vitória de Melo Pires, de 5?

Faltam medidas de proteção a moradores

Para além das fartas evidências e dos números disponíveis, a ineficácia e os danos colaterais de políticas de segurança pública baseadas em confrontos bélicos de alto impacto pode ser sintetizada numa reflexão simples, externa ao eterno pêndulo "bandido versus cidadão de bem".

Se olharmos atentamente a legislação brasileira, segurança pública é um direito fundamental e condição central para o exercício da cidadania. Se assim fossem pensadas as operações policiais, ações nos morros cariocas jamais seriam autorizadas sem que medidas de proteção à população que neles residem fossem previamente planejadas.

Sob qualquer ética ou métrica minimamente responsável em termos de Estado de Direito e devido processo legal, como justificar operações que — em nome do cumprimento de poucos mandados de prisão ou apreensão de armas e munições — violam direitos básicos ao impedirem que milhares de pessoas não possam ir estudar, trabalhar, procurar atendimento de saúde e simplesmente ir e vir de acordo com sua vontade?

As polícias brasileiras são muito competentes naquilo que compreendem como suas atribuições e possuem pessoal altamente qualificado e tecnologias avançadas. Se estão optando por confrontos abertos, independente dos impactos na vida das comunidades, é porque estão se sentido autorizadas moral e politicamente para agirem enquanto tal.

No caso da última quinta (21), seria possível que a operação fosse pensada para prender os supostos criminosos no momento do crime? Afinal, uma operação com o menor número de vítimas fatais significaria menos riscos para a comunidade, mais provas que levassem à responsabilização desses criminosos, redução do sentimento de impunidade que graça no país e observância do estado de direito.

É verdade, as facções prisionais e as milícias não podem matar impunemente policiais e sequestrar a liberdade das comunidades. Mas, se queremos romper a indiferença e a reprodução da violência, a política precisa ser capaz de dizer que este modelo de segurança pública não pode continuar sendo retroalimentado e legitimado.

* Diretor-Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Professor da FGV EAESP