OPINIÃO
Após vitória de Trump, Brasil precisa liderar na defesa de direitos
César Muñoz Acebes
Colunista convidado*
17/11/2024 05h30
No passado, os Estados Unidos frequentemente ficaram muito aquém de suas promessas de defender a democracia e os direitos humanos em todo o mundo. Sob a presidência do recém-eleito Donald Trump, podem retroceder ainda mais.
O primeiro mandato de Trump foi marcado por violações de direitos. Suas promessas durante a campanha de 2024 preocupam ainda mais. Políticos autoritários e contrários aos direitos humanos em todo o mundo podem se sentir fortalecidos com sua vitória eleitoral.
É fundamental que outros líderes levantem suas vozes em defesa dos direitos humanos e da dignidade para todos.
Como uma grande democracia no Sul Global e que resistiu a sérios ataques a suas próprias instituições democráticas, o Brasil tem um papel particularmente importante a desempenhar na América Latina e ao redor do mundo. Sob a presidência de Lula, o Brasil busca recuperar sua posição internacional após tornar-se quase pária durante os quatro anos do antecessor Jair Bolsonaro. O governo estará sob os holofotes como anfitrião da cúpula do G20 em 18 e 19 de novembro, além do BRICS e da Conferência do Clima das Nações Unidas (COP30) no próximo ano.
No entanto, um obstáculo significativo para a liderança do Brasil tem sido suas inconsistências.
O Brasil defendeu o direito internacional e condenou crimes de guerra na Palestina e no Líbano, por exemplo, mas não demonstrou a mesma contundência em relação aos abusos na Ucrânia.
Durante o primeiro mandato de Lula, o Brasil foi um importante defensor do Tribunal Penal Internacional (TPI), mas, 20 anos depois, seu governo optou pela abstenção na primeira votação da resolução anual da Assembleia Geral da ONU sobre o TPI. Em 2023, Lula afirmou que "nem sabia da existência desse tribunal".
Além disso, Lula chegou a garantir que o presidente russo Vladimir Putin não seria detido caso viesse ao Brasil. Como membro do TPI, o Brasil seria obrigado a cumprir o mandado de prisão do tribunal contra Putin por seu suposto papel na transferência forçada e deportação de crianças ucranianas pelas autoridades russas.
O Ministro das Relações Exteriores disse que o Brasil ficaria "muito contente" se Putin participasse da cúpula do G20 no Rio de Janeiro. Posteriormente, voltou atrás, dizendo que não poderia descartar a possibilidade de um juiz brasileiro emitir um mandado de prisão contra Putin.
Durante seu primeiro mandato, Trump impôs sanções ao TPI. Após novos ataques de membros do Congresso dos EUA contra o tribunal, não surpreenderia se Trump intensificasse as sanções ao TPI durante o segundo mandato. O Brasil e outros Estados membros precisarão defender o TPI para evitar um grave enfraquecimento da Justiça internacional.
O meio ambiente é outra área em que a liderança do Brasil será fundamental considerando a oposição ferrenha de Trump aos esforços para conter as mudanças climáticas. No entanto, a aspiração do Brasil de se tornar um "gigante da sustentabilidade", como disse Lula, também é prejudicada pela inconsistência.
Embora tenha avançado na redução do desmatamento da Amazônia, o governo planeja investir bilhões de reais em novos poços de petróleo e gás, contribuindo para as emissões globais por muitos anos, seja a queima dos combustíveis fósseis no Brasil ou no exterior.
A política externa do Brasil evoluiu nos dois anos sob a presidência de Lula.
Na Assembleia Geral da ONU, em setembro, Lula adotou uma postura mais alinhada ao direito internacional, condenando a "invasão do território ucraniano", o ataque liderado pelo Hamas contra civis em Israel em 7 de outubro de 2023 e a "punição coletiva" do governo israelense contra os palestinos.
Em relação à Venezuela, em 2023 Lula descreveu as preocupações com o enfraquecimento das instituições democráticas no país vizinho como uma "narrativa construída", embora o presidente Nicolás Maduro tenha cooptado todos os poderes do Estado e seja responsável por graves violações dos direitos humanos. No entanto, desde que o Maduro afirmou ter sido reeleito em eleições em julho, sem apresentar as atas eleitorais como prova, Lula se distanciou do governante venezuelano.
O Brasil também pode contribuir para melhorar a vida das pessoas em todo o mundo enquanto defensor da tributação progressiva e do combate à desigualdade, questões que são caras ao presidente Lula. Pode contribuir ainda na defesa dos direitos dos refugiados e migrantes, e da autonomia das mulheres e seu direito de decidir sobre suas próprias vidas, sobretudo diante da administração Trump, que parece ter a intenção de seguir na direção oposta.
E o Brasil pode fazer contribuições importantes no enfrentamento das crises humanitária e de segurança pública no Haiti por meio de um engajamento mais vigoroso no país caribenho.
O Brasil também deveria trabalhar com outros países para preencher as lacunas na assistência humanitária e na proteção dos direitos humanos em outros países e regiões.
O Brasil deveria criticar publicamente os abusos cometidos pelo governo dos Estados Unidos, inclusive se Trump cumprir suas promessas de detenção e deportação em massa de milhões de pessoas, o que destruiria famílias, e suas ameaças de usar o Departamento de Justiça para retaliar seus oponentes políticos.
Crucialmente, o Brasil também precisa liderar esforços multilaterais para proteger os direitos humanos de populações que sofrem sob governos repressivos que afirmam estar do outro lado do espectro político de Trump, como Cuba, Nicarágua e Venezuela na América Latina. Tampouco deveria aceitar as tentativas de Putin de vestir o manto do anticolonialismo e do anti-imperialismo em nome da Rússia.
Demonstrar posições internacionais coerentes também significa que o Brasil precisa proteger os direitos humanos em casa, especialmente por meio de políticas de segurança pública que sejam eficazes e respeitem direitos.
O Brasil deveria estar ao lado de todas as vítimas de violações de direitos humanos, independentemente de quem sejam, onde moram e quem seja o responsável pelos abusos. Agora, uma voz corajosa e consistente é mais necessária do que nunca.
* César Muñoz Acebes é diretor da Human Rights Watch no Brasil.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL