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Lira ameaça tomar do governo controle de contratos bilionários de energia

Andreza Matais

Colunista do UOL, em Brasília

08/03/2024 04h00Atualizada em 08/03/2024 19h40

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), deu início a uma nova queda de braço com o governo Lula, que tem potencial de culminar em crise política. Desta vez, estão em jogo contratos bilionários para renovação das concessões do setor elétrico. O UOL apurou que Lira lançará mão, inclusive, de um "duelo de decretos" em caso de reação do governo Lula.

Forjado por Lira e aliados, um projeto de lei visa escantear o Ministério de Minas e Energia e definir o Congresso como único responsável por negociar as renovações de concessões com grandes grupos do setor elétrico. Na prática, o centrão tenta avançar sobre mais uma área que hoje é de competência do Executivo.

A previsão é que, com a prorrogação dos acordos, os investimentos superem R$ 180 bilhões.

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Tendo como pano de fundo episódios recentes de apagões em cidades brasileiras, os contratos começam a vencer no próximo ano e precisam ser renovados ou desfeitos.

A oportunidade provoca disputa pelo papel de interlocutor com as empresas:

De um lado, está o ministro Alexandre Silveira (Minas e Energia), que tenta convencer o governo a se manter como único interlocutor das empresas, mas enfrenta pressão política para ceder ao Congresso;

Do outro, está o presidente da Câmara, para quem o tema deve ser tratado pelo Congresso sem a interferência do Executivo. Isso significa obrigar as distribuidoras a conversar com 513 deputados e 81 senadores.

Os aliados

Filiado ao PSD, Silveira tem a seu lado Gilberto Kassab, presidente nacional da legenda; o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); e seu chefe, o presidente Lula.

Lira, por sua vez, tem o apoio de quase 400 deputados, o que lhe permite paralisar o governo.

Dado o tamanho dos contendores, o TCU (Tribunal de Contas da União) se retirou de fininho. A Corte de Contas decidiu que só vai se manifestar sobre a renovação dos contratos depois que as regras forem definidas. O ministro esperava ter o tribunal ao seu lado.

Na semana passada, Lira mostrou sua disposição para a briga e surpreendeu o governo.

Em poucos minutos, ele conseguiu aprovar o regime de urgência para a tramitação do projeto. A expectativa é que o texto seja aprovado pelo plenário da Câmara nos próximos dias.

Governo vê erro de articulação. Quem acompanhou a cena conta que o ministro Rui Costa (Casa Civil) e Miriam Belchior (número dois da pasta) ao saber da notícia engoliram seco, levaram a mão à cabeça e consideraram um erro da articulação política ter deixado Lira golear. O cálculo é que tentar reverter a situação seria comprar uma briga com quase toda a Câmara.

O placar da votação mostrou o peso do presidente da Câmara: 339 a 82. A urgência significa passar o projeto na frente de todos os outros e pular a discussão nas comissões temáticas.

Xeque-mate de Lira. A reportagem apurou que Lira avisou ao governo que, se o Executivo soltar um decreto com as novas regras para os contratos, a Câmara vai aprovar outro, anulando seus efeitos. Isso significaria impor uma derrota ao presidente Lula e estabelecer uma crise política que, assim como uma CPI, ninguém sabe como termina.

Ao UOL, o ministro disse que "todo projeto aprovado na Câmara precisa passar pelo Senado" e que os deputados já tentaram sustar uma proposta do governo, sem sucesso.

O Congresso tem direito de fazer o que quiser, mas tem que aprovar. Passando na Câmara, quero ver aprovar no Senado.
Alexandre Silveira, ministro de Minas e Energia

Sobre o que motiva os deputados a apresentar o projeto, o ministro afirmou: "Precisa perguntar para o Bacelar". O deputado federal João Carlos Bacelar (PL-BA) é o autor do projeto de lei. Silveira ainda sugeriu que a Câmara aguarde para conhecer o decreto e só depois criticar.

Oficialmente, o discurso na Câmara é de que as empresas têm prestado um péssimo serviço, deixando milhões de consumidores às escuras, causando inúmeros prejuízos.

As razões para o projeto passam, contudo, longe da preocupação com os 55 milhões de consumidores que pagam conta de luz para 20 distribuidoras. O que está em jogo, segundo uma dezena de interlocutores ouvidos pela reportagem, é com quem as distribuidoras precisarão negociar os termos dos seus contratos.

"Não tem nenhum parlamentar curvado às empresas. É tudo multinacional, tudo cheio de compliance, tudo cheio de regra rígida para financiamento de campanha", afirmou Bacelar. E emendou um recado ao ministro: "Acho que ele precisa dialogar mais com o Congresso".

O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD) Imagem: Antonio Molina/Folhapress

Governo Lula herdou 'abacaxi' da gestão Bolsonaro

O assunto entrou no radar da Câmara no ano passado. Quando assumiu a pasta a convite de Lula, o ministro Alexandre Silveira herdou um abacaxi do governo Bolsonaro (PL).

Uma crise hídrica levou o então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, a insistir com um leilão emergencial, mesmo diante de alertas do TCU de que tentativas semelhantes nunca deram certo.

O almirante bateu o pé e assinou 22 contratos no valor de R$ 40 bilhões.

As regras eram tão difíceis de serem cumpridas, segundo quem entende do tema, que apenas seis empresas participaram do leilão —BTG, Âmbar (J&F Investimentos), KPS, Tradener, Rovema e Fênix. Da lista, apenas a KPS é estrangeira, com sede na Turquia, país governado por Recep Erdogan, ditador e amigo de Bolsonaro.

Pouco tempo depois da assinatura dos contratos, as condições climáticas mudaram, e os contratos se tornaram desnecessários. Como advertiu o TCU, nenhuma das empresas entregou o combinado no prazo, e todas foram multadas pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) em valores de até R$ 1,2 bilhão.

Quando Lula assumiu, em janeiro de 2023, o governo poderia ter rescindido os contratos e punido as geradoras por descumprimento das regras, mas a opção foi renegociar.

As tratativas foram feitas pelo TCU, que havia instalado uma câmara de conciliação, e pelo ministro Silveira. As empresas, mesmo as inadimplentes, tiveram redução de 50% nas multas e —o que mais as interessava— não precisariam usar toda sua capacidade para gerar energia, que passaria a ser agora sob demanda.

Das cinco geradoras, apenas o BTG chegou nessa fase já tendo pago a multa de R$ 200 milhões que recebeu da Aneel.

O banco foi representado no TCU por Marcus Vinícius Furtado Coelho, ex-presidente da OAB nacional. O advogado foi um dos maiores doadores da campanha do ministro Alexandre Silveira ao Senado em 2022. Depositou R$ 100 mil.

Nas contas do TCU, o acordo com a BTG reduzirá a tarifa emergencial, podendo significar uma economia estimada em R$ 224 milhões até 2025.

A turca KPS negociou sua dívida de R$ 1,1 bilhão em 12 vezes. O caso da Âmbar ainda está em aberto. Se não chegar a um acordo, terá que pagar a multa de R$ 1,2 bilhão ou discutir o valor na Justiça. A reportagem apurou que a Aneel deu aval para avançar nas negociações.

E o que o leilão emergencial tem a ver com a disputa aberta por Lira?

O centrão não gostou nada de saber que o ministro havia negociado com as geradoras sem o envolvimento dos parlamentares. A reação foi justamente aprovar o projeto que tira o governo dessa interlocução.

Na votação da urgência do projeto de lei, apenas o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) acendeu o sinal vermelho.

"O que vossas excelências estão propondo aqui? (...) Não vamos mentir para as pessoas que estão acompanhando a sessão. Essa tentativa de desqualificar o interlocutor que se posiciona de forma a impedir determinados interesses nesta Casa, no caso da bancada do PSOL, não vai funcionar. Há problemas nesse texto —e não são poucos, não", disse Glauber em reação a críticas por questionar a medida

Ao UOL, o deputado foi mais explícito.

Há uma preocupação de que, ao invés de ser utilizado para o bem comum, esse projeto sirva de barganha política para renovação infinita dos contratos de geração de energia.
Glauber Braga, deputado federal PSOL-RJ

O questionamento é que, se estivessem preocupados com o consumidor, governo e Congresso tratariam do tema em conjunto e não disputariam a interlocução com as empresas. Se aprovado na Câmara, o projeto precisaria ainda do aval do Senado.

Procurados, Lira e o ministro Rui Costa não quiseram se manifestar. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse que não conhece o teor do projeto da Câmara.

O ministro de Minas e Energia disse que classifica Marcus Vinícius como "seu amigo" e promete "deixar a vida pública caso alguém mostre que indicou o advogado para algum trabalho". Silveira também afirmou que o governo não cancelou os leilões emergenciais para evitar risco de judicialização dos contratos

O advogado Marcus Vinícius afirmou que trabalha nesse caso para o BTG há três anos, portanto, antes de Silveira assumir o ministério. Sobre sua relação com o ministro, afirmou que "é normal, como com todos os outros". Lembrado que ele doou R$ 100 mil para campanha, disse que fez o mesmo com outros candidatos que lhe pediram. No total, Marcus Vinícius repassou recursos para cinco candidatos.

Procurada, a Âmbar disse que não vai se manifestar. Já o BTG ainda não retornou. O espaço segue aberto.

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