Pauta do aborto fura bolha da polarização e leva esquerda de volta às ruas
A esquerda não foi à rua no 1º de maio e o ato de Lula no Dia do Trabalhador foi esvaziado. Enquanto isso, mesmo sem convocação, manifestantes saíram de casa contra o PL do aborto no último final de semana. A espontaneidade mostra que pauta que afeta diretamente as mulheres virou instrumento de mobilização.
O que aconteceu
Deputados da esquerda, da direita e cientistas políticos ouvidos pelo UOL ressaltaram uma série de particularidades na manifestação:
Relacionadas
- Foi um protesto com predominância feminina;
- O ato furou a bolha e pessoas que não são de esquerda participaram;
- O partido mais identificado com a manifestação foi o PSOL;
- Lula demorou para se pronunciar e teria perdido o bonde da história;
- O mundo mudou e o PT ainda estaria com dificuldades de acompanhar as mudanças;
A força da pauta que atinge as mulheres
O projeto do deputado Sóstenes Cavalcanti (PL-RJ) equiparava o aborto a partir de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio. A pena às mulheres podia chegar a 20 anos e também havia previsão de cadeia para os médicos. A reação da esquerda foi significativa e decisiva.
A deputada Erika Hilton (PSOL-SP) avalia que as chamadas pautas de costumes são fortes mobilizadoras porque interferem diretamente na vida das pessoas. Ela acrescenta que esta premissa serve para levar às ruas a militância da esquerda e da direita.
A parlamentar ressaltou que não houve convocação. A organização se deu de forma orgânica e teve engajamento porque "mães e avós sentiram que a Câmara dos Deputados traía um direito feminino."
A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) considera natural o recuo na tramitação do projeto depois da força dos atos. Ela lembrou que um dos pilares das democracias é ouvir o clamor que vem das ruas.
Durante o governo Bolsonaro, militância promoveu diversos atos públicos de apoio às pautas de direita. As ruas foram ocupadas por manifestações de apoio ao bolsonarismo e a esquerda ficou relegada no período.
As ruas começaram a ser tomadas pela direita desde as marchas de junho de 2013. As agendas conservadoras foram ganhando espaço em meio às manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2015 e 2016, e na ascensão de Jair Bolsonaro.
Erika Hilton elencou dois fatores cruciais para a esquerda vencer o debate desta vez. O principal é o estupro resultar em no máximo dez anos de cadeia e a vítima grávida que interrompesse a gestação depois de 22 semanas poder ser condenada a até 20 anos. Outro ponto foi a notícia de uma garota de 17 anos ter sido estuprada pelo pai enquanto estava internada na UTI.
Agenda da direita
As questões de costumes são tão fortes para a direita que apareceram no slogan de Jair Bolsonaro (PL) em 2022: Deus, pátria, família e liberdade. Na corrida presidencial o então candidato discursava contra aborto, liberação das drogas, pautas LGBT e dizia que a eleição era uma luta do bem contra o mal.
Líder da Minoria na Câmara, a deputada Bia Kicis (PL-DF) acrescenta que a defesa dos valores é assunto em todo o Ocidente. Ela atribui o avanço da direita nas eleições europeias a uma reação ao avanço da agenda identitária da esquerda. O aborto seria parte dessa agenda rechaçada agora, segundo ela.
Líder do PL, Altineu Côrtes (RJ) classifica a pauta de costumes como um marcador da diferença entre direita e esquerda. Com o centrão sempre aderindo ao governo do momento, houve um período em que a população deixou de notar discrepâncias entre os dois campos políticos.
Cientista político e sócio da Tendências Consultoria, Rafael Cortez ressalta que a ascensão evangélica aumenta a importância do assunto na política. Ele diz que a derrocada do PSDB e a consequente liderança do bolsonarismo na direita têm a ver com o fato de a agenda de valores não ter sido abraçada pelos tucanos.
Mas a força da pauta de costumes tem um limite. Professor da UFRJ e coordenador do Observatório Político e Eleitoral, Josué Medeiros declarou que estas bandeiras servem para eleger robustas bancadas de deputados e vereadores, mas não foram suficientes para a vitória de Bolsonaro.
Pauta de costumes traz votos
Cortez explicou que desde que o Brasil experimentou crescimento econômico nas últimas décadas, a segurança financeira fez a sociedade olhar para outros temas. Questões como igualdade de salários, casamento homoafetivo, racismo e aborto ganharam projeção.
A resposta é uma nova ordem social. Partidos e políticos precisam de canais de mobilização para estar em contato com eleitores e serem lembrados na hora do voto.
O bolsonarismo tornou-se a voz da direita apresentando elementos nacionalistas na estética verde e amarela e as pautas de valores. O cientista político ressalta que o cenário é dinâmico e aponta atualizações feitas desde a derrota de Bolsonaro.
Cortez lembrou que a primeira a falar no ato bolsonarista na Paulista em fevereiro foi Michelle Bolsonaro. Com um tom de pregação, ela fez um discurso com referências religiosas. Desde o 8 de Janeiro, porém, os elementos militares começaram a ficar relegados ao passado.
PSOL ganha projeção
O contexto de mobilizar trabalhadores contra patrões em que o PT foi fundado nos anos 80 não arrasta mais multidões, afirmou Eduardo Grin, cientista político e professor da FGV. O desafio do partido é se adaptar à linguagem das redes sociais e mostrar mais intimidade com questões de gênero, racismo e etc. Resumindo, adequar-se ao espírito do tempo.
Fundado por mulheres como Heloísa Helena e Luciana Genro, O PSOL tem outra visão de mundo, afirma a deputada Fernanda Melchiona (PSOL-RS). Ela acredita que a herança feminina se mantém e a bancada do partido na Câmara é composta por mais mulheres (8) que homens (6).
Erika Hilton lembrou que o partido se posicionou contra o PL do aborto desde o primeiro momento. A deputada disse que esta coerência é um ativo muito importante para um partido que tem em movimentos sociais ligados a questões de gênero considerável parte de sua base.
Eduardo Grin entende que, para as mulheres, o projeto ia além do aborto. Dizia respeito à autonomia sobre seus corpos. E por isso furou a bolha.
Responsabilidade do poder
O presidente Lula e a primeira-dama Janja foram criticados pelo silêncio. O professor da UFRJ Josué Medeiros vê estratégia política na postura do PT.
Estar na presidência exige contemplar uma agenda que vai além da partidária, diz o professor. Para ele, é uma responsabilidade do cargo ocupada à qual se soma ser um partido que representa mais gente e uma gama maior de pontos de vistas.
O especialista ressalta que é mais confortável para o PSOL atuar com combatividade. Medeiros avalia que o partido enfrentará os mesmos desafios do PT no dia que for governo. O deputado Guilherme Boulos (PSOL) liderar as pesquisas para prefeitura de São Paulo e tentar se afastar da imagem de radical que construiu, por exemplo, já é um sinal de busca de ponderação.
Prejuízos a Lula e Janja
Janja prometeu ressignificar o papel de primeira-dama. O silêncio nos primeiros dias após a aprovação da urgência do PL do aborto estaria na contramão do compromisso assumido. A situação exigia reação porque os deputados autorizaram diminuir a discussão e liberar para votar um projeto que mudava as condições de interrupção de gravidez.
Professor do Insper e cientista político, Carlos Melo afirmou que faltou coerência à primeira-dama. A imagem que ficou foi a de não haver autonomia para ela se posicionar, acredita. Janja segurou as críticas porque o Planalto não queria brigar com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
O rompimento do silêncio de Lula e Janja não consertou a situação. O desconforto do PT com a assunto era visível. O líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (CE), não quis conversar com a reportagem sobre o PL do aborto na última quarta.