Em dois anos de Lula 3, STF assume protagonismo em pautas progressistas
Nos dois anos de governo Lula (PT), o STF (Supremo Tribunal Federal) assumiu a dianteira em pautas consideradas progressistas e pautou mais de uma dezena de processos que, na prática, fizeram andar uma agenda esperada de uma gestão à esquerda.
O que aconteceu
Desde 2023, o STF tomou decisões e julgou ao menos 16 processos que fizeram avançar pautas de interesses de movimentos sociais de esquerda. Em pleno governo petista, coube à corte decidir sobre descriminalização das drogas, manifestações políticas de militares, índice de correção do FGTS, combate a incêndios na Amazônia e no Pantanal, atendimento médico da população trans e até privatização de cemitérios em São Paulo.
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Em alguns casos, iniciativas poderiam ter sido adotadas pelo governo federal. Em julgamento concluído em junho deste ano, por exemplo, o STF entendeu que as escolas públicas e privadas têm o dever de combater o bullying, o machismo e a homofobia. Além disso, o tribunal já sinalizou que deve discutir outros assuntos, como a licença-paternidade caso o Congresso e o governo federal não cheguem a um consenso e regulamentem algumas políticas públicas. Confira abaixo alguns dos julgamentos emblemáticos do STF que fizeram avançar pautas progressistas:
Para o professor de direito da FGV-SP e coordenador do Supremo em Pauta, Rubens Glezer, parte da atuação do STF é reflexo da própria Constituição. Segundo o professor, a Constituição de 1988 abarca os mais variados temas que podem ser levados a qualquer momento ao tribunal por uma série de atores sociais, como partidos políticos e sindicatos. Isso faz com que o Supremo acabe assumindo um protagonismo em vários assuntos.
Além disso, o professor vê um cenário conjuntural favorável ao protagonismo da corte. Para Glezer, também há interesses de atores políticos, seja do Congresso ou do governo federal em empurrar alguns temas mais espinhosos para o tribunal para evitar desgaste ou mesmo marcar posição junto ao seus apoiadores
O governo não tem achado esse protagonismo ruim. Dada minoria no Congresso, projetos de repercussão que apresentam divergência entre os dois campos, geralmente nas chamadas "pautas de costume", com derrota do Planalto, têm acabado no Judiciário.
Pautas que ganham destaque na corte refletem também valores liberais da Constituição. Na avaliação do professor da FGV, essas pautas mais progressistas na verdade são reflexo dos próprios valores liberais que estão na Constituição e que o Supremo tem buscado fazer valer.
Temos um Supremo que está operando uma Constituição que é de intervenção estatal e de direitos fortes. Direitos individuais. Então, se for fazer valer a Constituição, vai se chocar com a população mais conservadora, porque a Constituição é liberal, do ponto de vista dos direitos individuais. Fazer valê-la é se opor de alguma maneira ao ethos conservador. Professor Rubens Glezer, da FGV-SP
Ajuda ao Planalto
Para o Planalto, este protagonismo tem sido conveniente. Com minoria em um Congresso conservador, o governo tem usado a Suprema Corte como o último recurso diante das derrotas sucessivas em pautas de costume no Legislativo. Além disso, nos últimos anos o governo perdeu importantes mecanismos de disputa de poder com o Congresso, como as emendas parlamentares que passaram a ser impositivas e vem ocupando cada vez mais espaço no orçamento.
O primeiro exemplo disso ocorreu com o marco temporal. No fim do ano passado, Lula vetou todas as menções à restrição das demarcações de terras indígenas até 1988. Um mês e meio depois, o Congresso derrubou os vetos e manteve a "alma" do projeto, ao qual o governo era contrário.
Derrota já era esperada. Com documento orientado pela AGU (Advocacia-Geral da União), todos os argumentos foram fundados na inconstitucionalidade, acompanhando o entendimento anterior do STF. Partidos da base entraram com o pedido na Suprema Corte ainda em dezembro. O STF ainda não deliberou.
Neste ano, o veto ao projeto das saidinhas dos presos teve caminho semelhante. No anúncio, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, ex-STF, deixou claro que a proibição da saída de presos do regime semiaberto "atenta contra valores fundamentais da Constituição".
Mais uma vez, não adiantou: o Congresso derrubou o veto no fim de maio. Novamente, o resultado já era esperado pelo Planalto, apoiando-se no plano B de que, inconstitucional, a proibição cairá após avaliação de Suprema Corte. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) já entrou com pedido, que está nas mãos do ministro Edson Fachin.
O debate mais recente é a volta da PEC do Aborto, aprovada na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara. Com a oposição do PT e da esquerda, foi aprovada por 35 votos contra 15. Ainda precisa passar por mais uma comissão especial para ir a plenário, mas governistas já apontam que, caso passe lá na frente, devem recorrer ao Supremo.
Em outubro, o STF definiu que Ministério da Saúde e SUS (Sistema Único de Saúde) garantam atendimento médico a pessoas transexuais incluindo especialidades relativas a seu sexo biológico. A decisão foi fruto de um pedido do Diretório Nacional do PT, assinado pela deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR), presidente da legenda. No parlamento, o partido teria muito mais dificuldade para avançar com esta pauta.
Governistas argumentam que, no limite, recorrer ao STF "não é estratégia, mas Justiça". O ponto do governo é: a Suprema Corte existe como poder exatamente para balizar a Constituição. Se o parlamento ou o Executivo tentam achar uma brecha nela, nada mais justo que esta tentativa seja interrompida, com base legal.
A escolha também tenta evitar mais atrito com o parlamento. Para agentes da articulação governista, que tentam panos quentes com as Casas, os vetos e posicionamentos de Lula, baseados na Constituição, não seriam "ideológicos" e sim "técnicos".
Professor também vê atuação como uma forma de governo 'lavar as mãos' em disputas com Congresso. Na avaliação de Rubens Glezer, ter o tribunal assumindo brigas em temas sensíveis com o Legislativo acaba tirando o governo federal da linha de frente e permite a Lula, por exemplo, terceirizar crises, como no caso da discussão sobre emendas parlamentares.
O quanto que o governo Lula, de fato, está infeliz com o ministro Flávio Dino interferir na gestão das emendas parlamentares? Talvez ele tenha que sinalizar que não gostou (de alguma decisão) também para compor com o Congresso, mas assim, é o melhor dos mundos. O Executivo tentando recompor o equilíbrio orçamentário, falando que 'não tem nada a ver comigo, é um ministro lá'. Professor da FGV-SP, Rubens Glezer
Desgaste para o tribunal
Se por um lado a postura do Supremo tem sido benéfica ao governo federal, por outro o protagonismo também traz desgastes ao tribunal. Ao adentrar em vários temas, inclusive que poderiam ser definidos pelo governo ou pelo Congresso, o tribunal acaba chamando para si muita visibilidade em temas que podem gerar críticas da sociedade e até de parte do mundo político.
Tribunal também tentou sinalizar para parcela conservadora da sociedade. Neste ano, o STF também pautou alguns temas como o julgamento que entendeu que é permitido o uso de símbolos religiosos em repartições públicas e também o julgamento que autorizou testemunhas de Jeová a recusarem procedimentos envolvendo transfusão de sangue.
Ainda assim, isso não tem sido suficiente para aplacar as críticas de segmentos da sociedade e do mundo político. Para Rubens Glezer, isso ocorre porque nos julgamentos a parte que sai vencedora sempre acredita que já tem razão e que a Justiça apenas cumpriu a obrigação.
As razões estruturais e conjunturais que empurram esse protagonismo do STF que gera desconfiança e desgaste de parcela da sociedade e do mundo político podem levar, em um horizonte próximo, a um grau de insatisfação que faça com que determinadas decisões encontrem tanta resistência e cheguem no limite de virem a ser desrespeitadas. Este é um risco que o tribunal corre, infelizmente, com um protagonismo tão intenso em tantos assuntos. Rubens Glezer, da FGV-SP