Alemão, 10 anos pós-ocupação

Rio estuda reocupar favelas com policiais civis 10 anos após tomada do Alemão por forças de segurança

Herculano Barreto Filho Do UOL, no Rio Júlio César Guimarães/UOL

Um policial militar com um fuzil apontado para o asfalto da Estrada do Itararé, movimentada via de acesso ao Complexo do Alemão, sinaliza para que um veículo pare. Ele então mira a arma para a condutora, que baixa o vidro sem movimentos bruscos para mostrar o rosto. O agente acena com a cabeça em sinal positivo e a libera.

Em seguida, a blitz pede que um motociclista branco —com a bandeira do Brasil estampada no capacete— reduza a velocidade e também o libera. Por sua vez, dois homens negros que passavam de moto são parados para verificação de documentos. As abordagens ocorreram em 26 de novembro em frente a uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) no conjunto de favelas da zona norte do Rio.

Dez anos após forças de segurança retomarem o território dominado pelo tráfico, a abordagem, com moradores na mira de fuzis, contrasta com a promessa de instalação de uma polícia de proximidade —sem tiroteios, com menos armamento e maior contato com moradores.

"A pacificação foi uma falsa ilusão. As pessoas viam uma coisa na TV. Mas, na prática, a realidade era outra. Nada do que nos prometeram aconteceu", resume a artista plástica Mariluce Mariá, 39.

O governo do Rio estuda agora o que chama de "reocupação definitiva" de comunidades, com participação de policiais civis, para o ano que vem —novamente em projeto capitaneado pela polícia (leia mais abaixo). "Vamos apenas repetir o que deu certo e corrigir os erros", diz Allan Turnowski, secretário de Polícia Civil do Rio.

O ex-comandante das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) Frederico Caldas contudo ressalva: "É um equívoco continuar o projeto só com polícia e sem a presença social".

Apesar de o problema da violência não ter sido resolvido, a Polícia Militar insiste que "as UPPs serão o elo para a consolidação do policiamento de proximidade, lançado no começo deste ano".

Unidades continuam a operar no Alemão, mas a PM não informou quantas e em quais moldes.

Ághata, Eduardo e Fabiana

Na manhã de 28 de novembro de 2010, 3.500 homens ocuparam o Complexo do Alemão com 23 blindados e sete helicópteros em uma ação conjunta entre Polícia Civil, PM, Marinha e PF.

Três dias antes, imagens gravadas pela TV Globo em um helicóptero rodaram o mundo, mostrando traficantes armados fugindo por uma estrada de chão batido na Vila Cruzeiro, na Penha. Eles se dirigiram ao Alemão, à época apontado como o quartel-general da facção Comando Vermelho.

Era o começo da retomada pelo estado de um território onde foram instaladas 14 unidades de polícia pacificadora, as UPPs, que acabaram usadas para fins políticos, segundo criticam especialistas e até policiais que participaram da elaboração do projeto ouvidos pelo UOL.

A expansão desenfreada pelo governo Sérgio Cabral sem a devida contrapartida de serviços às comunidades —principal reclamação de moradores e do então secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame— completam a derrocada do programa de UPPs que, durante a intervenção federal na segurança comandada por militares em 2018, foi reduzido.

O que se vê hoje em um território com cerca de 3 km² onde vivem mais de 150 mil moradores é um cenário de conflito entre policiais e traficantes.

Moradores continuam em meio ao fogo cruzado, onde jamais deixaram de estar. No período, a violência —da polícia e do "estado paralelo"— não poupou a vida de crianças a idosos e policiais.

Em 2012, a soldado da PM Fabiana Aparecida de Souza foi morta com um tiro no peito em um ataque orquestrado por traficantes à UPP Nova Brasília.

Em abril de 2015, Teresinha de Jesus, 42, viu o filho Eduardo, 10, morrer após levar um tiro de fuzil na cabeça enquanto brincava em frente à sua casa durante operação da polícia no Alemão.

No ano passado, Ághata Vitória Sales Félix, 8, morreu também atingida por um tiro de fuzil quando voltava para a casa com a mãe em uma kombi na comunidade da Fazendinha. Um PM foi denunciado pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio) por homicídio qualificado.

Herculano Barreto Filho/UOL

'A pacificação foi uma falsa ilusão'

A artista plástica Mariluce Mariá, 39, se encontrou com a reportagem na quinta-feira passada (26) na Estrada do Itararé, um dos acessos ao Alemão. Em seguida, por telefone, falou com o motorista que subiria o conjunto de favelas. "É do Uber Comunidade? Tô aqui em frente à UPA."

O "Uber Comunidade" não tem relação com a empresa de transporte por aplicativo. É uma forma como os moradores se referem a um grupo de motoristas que ficam na entrada da favela Nova Brasília à espera de passageiros, com quem falam pelo WhatsApp. O custo do transporte pela região é fixo: R$ 14.

Foram os moradores que criaram essa alternativa de transporte para os moradores. É que o motorista por aplicativo não atende a localidade. Falam que é área perigosa

Ela faz uma retrospectiva dos últimos dez anos vividos no conjunto de favelas. "A pacificação foi uma falsa ilusão. As pessoas viam uma coisa na TV. Mas, na prática, a realidade era outra. Nada do que nos prometeram aconteceu", lamenta.

Divulgação/Polícia Civil

Secretário da Polícia Civil planeja reocupação para 2021

O delegado Allan Turnowski exerceu papel fundamental na ocupação do Alemão e Penha, na condição de chefe da Polícia Civil. Agora, avalia que os erros podem servir de lição para uma reocupação planejada em comunidades.

A ideia é que a iniciativa seja colocada em prática na capital no ano que vem. A proposta está em estudo, em conjunto entre as polícias Civil e Militar. Ainda não há definição sobre a área escolhida para ser o projeto-piloto.

Secretário da Polícia Civil há pouco mais de dois meses, Turnowski diz já ter discutido o assunto com Cláudio Castro, governador em exercício do Rio. "O que resolve é uma reocupação definitiva do território. Não vamos inventar a roda. Vamos apenas repetir o que deu certo e corrigir os erros", diz.

O delegado vê acertos na integração entre a Polícia Civil, PM, Forças Armadas e o próprio Tribunal de Justiça na ocupação territorial do Alemão. "Era o local onde uma facção guardava suas armas e drogas. Todos os chefes se escondiam lá", relembra.

Entretanto, ele diz acreditar que a ausência de investigações policiais durante a ocupação prejudicou o projeto.

Os gestores da ocupação colocaram a PM no terreno. Mas a investigação ficou fora do projeto [...] Quando os traficantes voltaram, não havia apuração para entender os motivos. Com isso, a população voltou a ficar com medo e a se afastar do policial. Foi a falência do projeto

Delegado Allan Turnowski, secretário da Polícia Civil

Levantamento feito pelo Disque Denúncia a pedido do UOL aponta que 60% das informações anônimas encaminhadas ao serviço neste ano se referem ao tráfico. Na maioria dos casos, são relatos sobre criminosos armados com fuzis, metralhadoras, pistolas, granadas e bombas caseiras.

Herculano Barreto Filho/UOL

Viaturas depredadas e anos de confronto

Nascida e criada no Alemão, Mariluce leva o UOL com o auxílio do "Uber Comunidade" ao teleférico das Palmeiras, a última estação do serviço desativado desde 2016.

O cenário é de abandono. Em frente ao local —projetado para estimular o turismo no conjunto de favelas—, há dez viaturas sucateadas, com pneus furados e vidros quebrados.

No começo da pacificação, Mariluce vendia suas obras de arte a turistas estrangeiros na entrada da estação. Hoje, teme se deparar com tiroteios entre policiais e traficantes.

A UPP não trouxe segurança. E ficou marcada como algo que veio para fazer mãe enterrar filho

Mariluce Mariá, artista plástica

O primeiro choque de realidade ocorreu com a mudança de perfil nas UPPs, diz.

Em um primeiro momento, eram policiais recém-formados, com treinamento para lidar com os moradores. Em seguida, passaram a aparecer "homens de guerra".

Segundo Mariluce, o período mais crítico ocorreu entre o fim da Copa do Mundo (2014) e 2017. "Teve muito morador que foi baleado dentro de casa. Eram tiros de blindado que atravessavam até duas paredes."

Em abril de 2017, a Defensoria Pública organizou uma audiência para discutir os conflitos no Alemão. Na época, moradores relatavam expulsões das suas residências a mando da própria PM para que seus imóveis servissem de ponto de observação, para verificar a movimentação do tráfico.

Divulgação

'Fomos, mais uma vez, abandonados'

As primeiras informações sobre a ocupação dos complexos do Alemão e Penha, em novembro de 2010, vieram pelo Twitter de um morador, com apenas 17 anos à época.

"Estava tentando repassar informações sobre a realidade [dos moradores], com informações que a imprensa não tinha naquele momento", lembra Renê Silva, idealizador do jornal comunitário Voz das Comunidades.

"O objetivo era informar o impacto dentro da comunidade. Foi um momento desesperador."

Renê preparou um movimento cultural chamado "invasão de livros", para levar leitura aos moradores no último sábado (28), em alusão aos dez anos de ocupação.

O retrato do fracasso das UPPs é a falta de estrutura. Criou-se uma expectativa de mudança. Mas o balanço desse período é que tivemos mais perdas. Tínhamos bancos, cinema, teleférico, biblioteca-parque. E, de 2014 para cá, todos começaram a sair. Fomos, mais uma vez, abandonados

Renê Silva, morador do Complexo do Alemão

Renê aponta a falta de investimentos em saúde, saneamento básico e educação. Em contrapartida, presenciou o aumento da violência. "Nós tivemos mais de cem dias de tiroteio", lembra.

Em um cenário conflagrado, ele ainda vê racismo na abordagem policial, como o caso narrado no começo da reportagem. "O jovem preto é o mais parado na blitz. Só em agosto, fui parado quatro vezes. As pessoas tentam justificar. Mas nada justifica essas abordagens. Só o racismo".

Herculano Barreto Filho/UOL

'E a vida dos meus filhos? Quem protege?'

Grávida de dois meses e com três filhos pequenos, Laureana Souza pegou um ônibus na pacata Caratinga (MG) para morar no Alemão a convite de uma irmã, em 2012. Na época, a comunidade ainda respirava a esperança de tempos mais prósperos após o processo de pacificação.

Laureana, 34, fixou residência no conjunto de favelas, onde montou um bar e ficou conhecida apenas como Mineira. Há oito anos no Alemão, teve outros três filhos no Rio. E tem muita história para contar sobre tiros, medo e desentendimentos com policiais.

"Em Minas, eu nunca tinha visto uma arma. A primeira vez que vi um fuzil aqui, cheguei a tremer", compara.

O caso mais emblemático ocorreu em 2016, quando PMs entraram no seu quintal para atirar. Mineira disse ter pedido para que parassem, porque poderia haver revide e os tiros acertariam a sua casa. Como os agentes a ignoraram, decidiu procurar o comando da UPP local.

"Tenho que proteger a vida dos meus policiais", teria dito um oficial. "E a vida dos meus filhos? Quem protege?", rebateu ela.

Arquivo pessoal

'É um equívoco continuar o projeto só com polícia'

Frederico Caldas, coronel da reserva da PM e ex-comandante das UPPs, escreveu o livro "O Fim da UPP: 500 dias no front da pacificação" (editora Altadena) em que relata a sua experiência.

"Foi simbólico, porque era o coração do Comando Vermelho. A própria quantidade de drogas e armas na ocupação evidencia o poderio bélico e econômico da facção", relembra.

Para ele, as manifestações de 2013 fragilizaram o projeto porque o efetivo da PM precisou ser deslocado para conter os protestos. "A cidade parou, o país parou. E tivemos outro fato emblemático com desaparecimento do Amarildo, que virou uma bandeira das manifestações."

No ano seguinte, um novo golpe: a falta de investimento abriu espaço para o retorno do tráfico. "Foram retirados viaturas, armamentos, coletes. Com o poder público fragilizado, os traficantes aproveitaram a oportunidade para se fortalecer", analisa.

Houve um esforço do comando da PM para dar sobrevida às UPPs. Mas não havia recursos. O que foi mais marcante foi a 'invasão social', que acabou não acontecendo. É um equívoco continuar o projeto só com polícia e sem a presença social. No Alemão, falta de saneamento, coleta de lixo, educação, saúde e empregabilidade. É uma tragédia social

Frederico Caldas, coronel da reserva e ex-comandante das UPPs

REGINALDO PIMENTA/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO

Motivações políticas e fracasso: o que dizem os especialistas

O sociólogo Ignacio Cano, especialista em segurança pública da Uerj (Universidade Estadual do RJ), diz que faltou planejamento e um estudo sobre as dimensões do Alemão e da Penha.

"Foi um grande fracasso. O contingente era insuficiente e a polícia ficou sempre na defensiva. Chegou a um ponto em que a polícia atirava para ficar no território. E isso é uma contradição em relação ao projeto inicial. Duvido que exista algum legado", analisa.

O projeto foi apresentado como a derrota final do Comando Vermelho e o fim dos problemas de segurança pública do Rio. Mas nada disso aconteceu. A polícia não conseguiu retomar o território ou desarticular o crime no local. E também não melhorou a sua relação com a comunidade

Ignacio Cano, sociólogo

Para ele, há como minimizar o problema da violência nas favelas. Mas essa solução não é resolvida com tiros. "Temos que inventar outro projeto que permita reduzir índices de violência sem aterrorizar as comunidades. Não podemos ficar no dilema de deixar como está ou entrar para trocar tiro e causar mais insegurança", critica.

Paulo Storani, antropólogo e capitão veterano do Bope, vê como um aspecto positivo a ocupação do QG do Comando Vermelho. "Foi um marco na história do Brasil e que mostra que, a qualquer momento, se for necessário, isso pode ser realizado", avalia.

Entretanto, afirma que as UPPs não trouxeram as melhorias sociais prometidas em áreas vulneráveis e se tornaram um projeto com interesses políticos.

Criou-se em cima da UPP um projeto de poder, que ajudou a eleger governador, prefeito, presidente. Em vez de resolver as unidades deficitárias, havia instalação de outras UPPs por razões políticas. Eram mais policiais nas comunidades do que no asfalto

Paulo Storani, antropólogo e capitão veterano do Bope

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