A história se repete

Ao chegar oficialmente a 35.026 mortes decorrentes da covid-19 — nas últimas 24 horas, foram registradas mais 1.005 —, o Brasil tem mais óbitos do que os causados pela gripe espanhola, que enterrou milhões de pessoas em todo o mundo. Aqui, entre 1918 e 1920, deixou pouco mais de estimados 35 mil mortos em uma nação que amargava a chamada República Velha.

Há cem anos fomos atingidos de forma periférica pela gripe, mas agora estamos no epicentro da crise, com 645.771 casos da doença causada pelo coronavírus, atrás apenas dos EUA (1.890.592, segundo a Universidade Johns Hopkins). Os norte-americanos (108.920) e o Reino Unido (40.344) estão à frente em número de mortes.

Se hoje o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) minimiza a doença, em 1918 o responsável pela saúde pública no país, o sanitarista Carlos Seidl, afirmava que a gripe espanhola era "só mais um resfriado". Fake news e remédios milagrosos também se repetem com impressionante semelhança.

Em números

Os números da gripe espanhola são incertos por conta da Primeira Guerra, que ocorria simultaneamente, vitimando cerca de 15 milhões. A censura em muitos países atrapalhava essa contagem.

Gripe espanhola

No mundo, morreram cerca de 50 milhões de pessoas, cerca de 2,7% da população mundial, segundo a Biblioteca Nacional dos EUA
Ao menos 500 milhões contaminados no mundo, o que correspondia a 1/3 da população da época, também de acordo com a Biblioteca Nacional
No Brasil, morreram aproximadamente 35 mil de uma população de entre 28 e 30 milhões, segundo estimativas do IBGE

Covid-19

Até sexta-feira (5), quase 393,4 mil pessoas morreram vítimas da doença, 0,005% da população mundial atual
Até a mesma data, aproximadamente 6,7 milhões foram diagnosticados com a doença
No Brasil, com uma população de 200 milhões, já são 35.026 mortos

A espanhola e a covid-19 no Brasil

Não há consenso entre historiadores sobre o início da gripe espanhola, embora os EUA sejam considerados por muitos como o ponto originário da doença. Neutra na Guerra, a Espanha não censurava as notícias sobre a pandemia em seus jornais, o que deu origem à denominação "gripe espanhola".

A propagação de ambas tem muita relação com os deslocamentos internacionais, e o principal vetor da gripe espanhola, à época, foi a Primeira Guerra Mundial. O primeiro registro da gripe espanhola foi nos EUA, em 1918. Logo, a doença chegou à Europa e atingiu os exércitos aliados.

No Brasil, a doença chegou em setembro de 1918 por meio de navios. Um em específico trouxe o destacamento naval brasileiro enviado a Dacar para ajudar na guerra. Centenas desses marinheiros morreram. O navio inglês Demerara aportou no Recife, Salvador e Rio de Janeiro e logo depois casos começaram a aparecer no Nordeste e no Sudeste. Em outubro, ela já tinha chegado a quase todas as cidades do país, incluindo São Paulo e Rio de Janeiro.

A gripe espanhola pegou autoridades, políticos e médicos de surpresa. Não havia um norte para que especialistas descobrissem como se dava a contaminação ou quais eram os sintomas específicos. À época, a autoridade máxima de saúde, o sanitarista Carlos Seidl via o isolamento como atrasado e sem comprovação de eficácia.

Ainda se estuda como o vírus Sars-Cov-2 surgiu, mas a maior aposta é que tenha sido no mercado de pescados chinês. Em 31 de dezembro a China notificou a OMS sobre um surto de síndrome respiratória na cidade de Wuhan, Hubei, na China. Em poucos meses, ele ganhou o mundo.

A doença foi notificada no Brasil pela primeira vez em 26 de fevereiro após o diagnóstico positivo de um homem que retornara da Itália. Menos de um mês depois, em 17 de março, foi registrada a primeira morte em São Paulo. Desde então, os números sobem a cada semana, transformando o país em um novo epicentro da covid-19.

Trabalhadores: as principais vítimas

A espanhola afetou principalmente os trabalhadores, e o início da pandemia se deu entre as classes mais baixas. Historiadores apontam que o vírus contaminou primeiramente operários dos portos e, depois, passou a contaminar as classes mais altas.

O novo coronavírus foi inicialmente detectado entre pessoas que haviam viajado a países com casos. Logo se espalhou para as periferias das cidades e agora se interioriza. Por conta da informalidade, poucos podem optar pelo isolamento social.

Os presidentes

Em março de 1918, Rodrigues Alves foi eleito e, poucos meses depois, em outubro, diagnosticado com gripe. Morreu em janeiro do ano seguinte. Muito se fala sobre Alves ter sido vítima da gripe espanhola, o que nunca foi de fato comprovado. As críticas pela inépcia do poder público frente à pandemia acabaram concentradas em seu antecessor, Venceslau Brás.

Bolsonaro tem subestimado a covid-19 e já a classificou como "uma gripezinha". Ele se posiciona de forma contrária ao isolamento social e defende o uso da cloroquina como tratamento, apesar da ausência de estudos conclusivos. Protagoniza embates públicos, já demitiu dois ministros e participa constantemente de aglomerações sem máscaras ou equipamentos.

Os ministros

O sanitarista Carlos Seidl, responsável pela direção de saúde pública, negligenciou a doença em seu início, algo que o próprio reconheceu depois. Viria a dizer que a gripe poderia não ser controlada pelo Estado e gerou pânico. Renunciou em outubro de 1918, dando lugar a Theóphilo Torres, que chamou Carlos Chagas para a linha de frente.

Quando o novo coronavírus desembarcou no Brasil, Luiz Henrique Mandetta era ministro da Saúde. Após rusgas com Bolsonaro por conta do isolamento e da cloroquina, principalmente, foi substituído por Nelson Teich, que durou pouco no cargo por conta dos mesmos problemas. Agora, a pasta é conduzida interinamente pelo general Eduardo Pazuello.

Os tratamentos

Não houve um tratamento específico para a espanhola, mas medidas como o uso de máscaras e o isolamento social foram utilizadas para contê-la. Tratamentos sem respaldo científico foram propagados como milagrosos (Água Purgativa Queiroz, as Pílulas Sudoríficas de Luiz Carlos ou as Balas Peitoraes). Entre os medicamentos estavam as soluções de quinino.

Do quinino, chegou-se à cloroquina, que hoje está no centro do debate. A substância tem apoio de Donald Trump e é tratada por Bolsonaro como um remédio "que está dando certo", mesmo sem estudos conclusivos. Publicações sobre a cloroquina nas redes sociais de Bolsonaro foram removidas sob alegação de que o presidente está compartilhando informações falsas.

Isolamento e máscaras

Muitos se revoltaram contra o uso de máscaras nos Estados Unidos, e uma "Liga Anti-Máscara" chegou a ser criada. Já em relação ao isolamento, há estudos que mostram que o distanciamento social ajudou a conter o vírus nos EUA. No Brasil, não há registros do uso de máscaras pela população. Também não houve posição do Estado em relação ao isolamento, apenas uma recomendação para evitar aglomerações.

Mesmo com os dados e pesquisas mostrando a eficácia do distanciamento social para conter a taxa de contágio e evitar o colapso dos sistemas de saúde, o governo federal não traçou uma diretriz única. Desde a detecção do primeiro caso, Bolsonaro tem se posicionado publicamente contra a medida, criticado estados e municípios por adotá-la. Em relação às máscaras, o ministério da Saúde recomenda sua utilização desde abril.

Fake news

As fake news eram muitas vezes disseminadas pela imprensa, que publicava, sem comprovação científica, receitas que prometiam curar ou impedir a infecção. A divulgação de um caldo de galinha milagroso levou as pessoas a se aglomerarem em filas em busca de ingredientes e o próprio governo promoveu sua distribuição.

Agora as receitas milagrosas circulam pelas redes sociais e são às vezes atribuídos falsamente a cientistas famosos. Receitas milagrosas voltaram. Uma das fake news que teve mais impacto foi a de que havia caixões sendo enterrados vazios em Manaus. A "notícia" levou pessoas a começar a abrir caixões.

Faixa etária

Em um primeiro momento, pensava-se que os idosos pudessem ser as principais vítimas, mas, tanto no Brasil quantos nos EUA, a faixa mais atingida pelo vírus foi a de homens adultos entre 20 e 40 anos. Isso, segundo estudiosos, porque compunham a maior parte da classe trabalhadora.

No caso da covid-19, maiores de 60 anos e portadores de condições pré-existentes formam a maioria das vítimas, embora tenha havido um crescimento em número de mortes em adultos e jovens. No último boletim epidemiológico, 69,4% das vítimas tinham mais de 60 anos.

Epidemias

Diversas epidemias já assolaram o mundo e mataram milhões de pessoas. Há algumas mais famosas, outras muito antigas e aquelas que ainda não foram erradicadas. A maioria delas tem números de mortos estimados, pois a falta de recursos e informações inviabilizavam a contagem.

A mais conhecida é a Peste Negra ou Peste Bubônica, que assolou a Europa nos anos de 1300. Estima-se que a doença tenha matado entre 75 e 200 milhões de pessoas, embora não haja consenso entre historiadores.

A varíola foi uma doença que circulou na humanidade por milhares de anos. Há registros de que faraó Ramsés II tenha sido vítima da enfermidade que matou mais de 300 milhões de pessoas, até ser erradicada em 1986.

Tuberculose, cólera e Aids são exemplos de doenças que já mataram milhões e ainda não foram erradicadas. A última já vitimou 32 milhões de pessoas até 2018, segundo a Unaids, e caminha para ser uma das maiores epidemias da humanidade.

Aos 101 anos, sobrevivente da espanhola se cura da covid-19

A americana Angelina Friedman nasceu em 1918 em um navio que levava imigrantes italianos para os EUA justamente em meio ao surto de gripe espanhola. Sobrevivente, ela hoje mora próximo a Nova York, um dos estados mais afetados. Em uma visita de rotina ao hospital, foi diagnosticada com a covid-19. Ficou internada uma semana e isolou-se em seguida na casa de repouso onde vive. Hoje, está curada.

"A minha mãe é uma sobrevivente. Ela sobreviveu a abortos, sangramentos internos e câncer. Ela e meu pai tiveram câncer ao mesmo tempo. Ela sobreviveu, mas ele não", relatou Merola, filha de Angelina.

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