Déjà Vu

França revive greve dos caminhoneiros e Brasil de 2013; Macron recua, aumenta salário e reduz impostos

Bruno Aragaki Do UOL, em São Paulo Lucas BARIOULET / AFP
Thibault Camus/AP Photo

Macron recua

Depois de mais de um mês de protestos na França, o presidente francês, Emmanuel Macron, anunciou uma série de medidas nesta segunda-feira (10) para tentar acalmar o país:

  • Aumento de 100 euros (R$ 445) no salário mínimo francês a partir de 2019. O valor hoje é 1.498,47 euros (R$ 6.671)
  • Pedido aos empregadores "que podem" para que paguem um bônus de fim de ano aos empregados - "e será livre de impostos"
  • Para os aposentados que ganham menos de 2.000 euros por mês (R$ 8.900), anulação de uma taxa que seria cobrada
  • Fim de cobrança de imposto sobre as horas extras

Com um tom mais sóbrio e conciliador do que nos outros discursos, Macron voltou a condenar a violência nas manifestações, mas disse que não ignora "que há uma cólera e uma indignação".

Dois pontos centrais nas manifestações ficaram de fora: o próprio pedido de renúncia do presidente -- que não demonstrou intenção de deixar o cargo; e a volta de imposto sobre as grandes fortunas.

Para muitos manifestantes, ao retirar a taxa, Macron privilegiou os mais ricos. Macron voltou a insistir que a medida tem como objetivo atrair aqueles "que produzem emprego e riqueza".

Inquietação francesa remete a turbulências brasileiras

“Não é apenas pelo aumento da gasolina, é por direitos”, resume Xavier Renou, 46, um dos manifestantes de “colete amarelo” que, há um mês, aos sábados, tomam as ruas da França com palavras de ordem contra a alta dos preços, mas também reclamando dos políticos e da falta de diálogo.

Mesmo após recuos do governo de Emmanuel  Macron em relação à alta dos combustíveis, os “gilets  jaunes” (coletes amarelos, em francês, em referência à peça de segurança que todo motorista deve levar no carro no país) seguem levando milhares às ruas do país. No último sábado, 136 mil protestaram, e a polícia prendeu 2.000. 

“É um movimento que não tem líder sindical, político ou carismático”, diz ao UOL Jean-François Amadieu, professor de sociologia da Universidade Sorbonne. Para ele, essas características fazem do movimento de agora “na França um fenômeno único”.

Mas do lado de cá do planeta, os relatos soam como momentos que já vivemos – um déjà vu (literalmente, “já visto” em francês).

Em 2013, ruas de diversas cidades brasileiras foram tomadas por manifestantes convocados pelas redes sociais para protestar, a princípio, contra o aumento da passagem de transportes públicos. E em maio deste ano, caminhoneiros bloquearam rodovias em protesto à alta do preço do combustível – elementos presentes na greve de agora na França.

Para quem viveu os protestos de 2013 e a greve dos caminhoneiros do Brasil, não é tão difícil entender o que está acontecendo na França. Veja abaixo, em dez pontos:

Lucas BARIOULET / AFP

1 - Aumento de preço é (só) o estopim

Bob Edme / AP Photo
Vincent Kessler / Reuters

Tudo começou com a insatisfação com o aumento do preço do combustível – e isso se aplica à França agora e à greve dos caminhoneiros do Brasil em maio. No país europeu, “uma petição online reclamando da alta do preço viralizou e passou de um milhão de assinaturas, o que para a França, é muito”, explica o professor Amadieu.

Mas a gasolina foi, literalmente, apenas o combustível da indignação que levou milhares às ruas francesas.

“O que a gente não quer mais é essa injustiça. Macron falou que aumentaria o preço da gasolina para financiar iniciativas ecológicas, mas dá isenções fiscais a empresas poluidoras”, disse Xavier Renou ao UOL.

Ele integra um grupo de moradores de Beaumont-sur-Oise, cidadezinha de 10 mil habitantes e 40 quilômetros de Paris, que bloquearam as ruas para reclamar do aumento anunciado.

“Os franceses de classe média e da classe popular estão cansados de pagar a conta dos mais ricos. Mas não é apenas pelo aumento da gasolina, é por direitos: a escola pública está pior, querem tirar o seguro desemprego, o direito à aposentadoria e o estado de bem-estar social que a França um dia teve”, diz Renou.

Na imagem, manifestante segura placa que diz "menos imposto para trabalhadores e aposentados".

(Brasil, 2013)

ANTONIO SCORZA/UOL ANTONIO SCORZA/UOL
Arquivo pessoal

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Das redes para as ruas

O gigante que acordou em 2013 e os coletes amarelos que tomam as ruas francesas em 2018 utilizaram as mesmas ferramentas para convocar multidões: basicamente, grupos de Facebook e de Whatsapp. Na França, também é comum o Telegram.

“Se não fosse o Facebook, acredito que o movimento não iria para frente”, disse ao UOL Quentin Simon, 30, na foto ao lado.

Técnico de manutenção, ele é um dos moderadores voluntários de um grupo de “Gilets  Jaunes” no Facebook que reúne mais de 130 mil pessoas.

Meu trabalho é excluir as fake news. Também não aceitamos mensagens religiosas, de partidos políticos. O objetivo é trocar informações sobre as manifestações

Simon viajou três horas de carro para ir de Ardenas, onde mora, até Paris, para participar das manifestações.

'Devolva o dinheiro', diz manifestante na França em 2018

Christian Hartmann / REUTERS Christian Hartmann / REUTERS
Helene Valenzuela / AFP

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Rejeição à classe política

A rejeição aos partidos políticos, marca das manifestações de 2013 no Brasil, também é forte nos protestos franceses.

 “É muito complicado analisar o movimento atual na França, porque não há conotação política clara. Há desde adeptos da extrema direita até adeptos da extrema esquerda”, explica o professor Amadieu.

Entre os participantes, há muitos que votaram em Emmanuel Macron, de centro-direita, mas se sentem decepcionados pela maneira de conduzir a política. Pesquisa do canal de TV BFM da última quarta-feira (5) mostra que 52% daqueles que declaram voto em Macron apoiam as manifestações.

É preciso lembrar que o sentimento de rejeição aos políticos, de certa maneira, contribuíram para a eleição de Macron  há pouco mais de um ano e meio. "Ele é um candidato que se vendeu como sendo alguém que vinha de fora, como um banqueiro, mas continuou colocando em prática uma política que privilegia poucos, e agora as pessoas estão zangadas", diz a historiadora Maud Chirio.

Os manifestantes não rejeitam apenas os políticos, mas também recusam toda a estrutura política: sindicatos, associações e coletivos

Maud Chirio, Historiadora e especialista em história do Brasil

RFI / Reprodução

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Quem é o líder?

Descentralizadas e difundidas pelas redes sociais, as manifestações de 2013 no Brasil, a greve dos caminhoneiros daqui e a dos coletes amarelos na França também apresentam a peculiaridade de não ter "chefes", nem representantes oficiais. “Não há líder intelectual, por exemplo”, diz o professor Amadieu.

E esse é um fato que dificulta, do lado do governo, negociar o fim das manifestações – algo visto também na greve dos caminhoneiros.

Afinal, com quem negociar o fim da revolta?

“Teve gente que quis se apresentar como líder e foi até ameaçado”, relata Quentin Simon, voluntário na moderação de um grupo no Facebook.

É cada um por si. Há representantes dentro dos grupos de Telegram (similar ao whatsapp) de uma cidade que se comunicam com representantes de outras localidades, mas só para fazer circular as mensagens. Ninguém é chefe

Xavier Renou (foto), que coordena um grupo no Telegram para troca de informações sobre as manifestações, mas rejeita o título de 'representante' do movimento.

Maud Chirio, historiadora, aponta que jornais franceses têm traçado perfis de lideranças do movimento. "Mas são perfis muito extremos, tanto da direita, quanto da esquerda. Duvido não só que essas pessoas sejam legítimas, mas principalmente representativas dos manifestantes que vão às ruas agora", disse.

5 - Demandas diferentes e até contraditórias

Rafael Yaghobzadeh / AP

Um passeio pelos grupos de mensagem dos coletes amarelos revelam demandas não apenas diferentes, mas até contraditórias entre si.

Há quem se queixe dos imigrantes e quem aponte preconceito contra os estrangeiros.  No Facebook, um manifestante reclamava da “ditadura esquerdista” e defendia a saída da União Europeia, enquanto outro dizia que os acordos para trazer imigrantes enriquecem a França.

“Uma das dificuldades do movimento de agora na França, assim como ocorreu no Brasil em 2013, é entender o que está acontecendo. Você pode conversar com especialistas, jornalistas e todos terão dúvidas”, opina a francesa Maud Chirio, doutora em História do Brasil.

“Tem muitas reivindicações diferentes, algumas são realizáveis, outras não fazem o menor sentido. Mas todos reclamam de que o salário já não vale nada”, diz Simon, que lê mais de cem mensagens de diz enquanto faz a moderação de comentários em um grupo no Facebook.

Na última sexta-feira (7), uma lista com 23 pontos viralizou nas redes sociais entre os franceses. As reivindicações iam da contratação de mais funcionários para os serviços públicos ao fim da “ideologia” nas escolas.

Um cenário não muito diferente daquele visto no Brasil em 2013, quando as ruas foram tomadas por manifestantes de direita e de esquerda, muitas vezes com pautas políticas contraditórias, lutando contra um inimigo comum não muito bem definido.

"No Brasil, o movimento logo ganhou o mote de 'combate à corrupção', que é uma demanda um pouco menos presente na França. Aqui, ainda é tudo mais difuso", diz a historiadora Chirio.

Rafael Yaghobzadeh / AP
FRANCOIS LO PRESTI / AFP

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Forte adesão popular

Apesar dos transtornos causados pelos protestos e de alguns episódios de violência e vandalismo, as manifestações brasileiras e a francesa contam com grande apoio popular. Lá, 72% dos entrevistados por uma pesquisa da BMFTV disseram apoiar os ‘coletes amarelos’, mesmo depois de o governo ter recuado na intenção de aumentar imposto sobre os combustíveis.

“Há um sentimento de traição, de que os partidos políticos privilegiam sempre os mesmos, os ricos de Paris, que faz com que a maioria da sociedade veja a insurreição como legítima. E ela foi ganhando novos adeptos: estudantes secundaristas, ecologistas”, explica a professora Chirio.

Assim como no Brasil, imagens de repressão policial sobre os manifestantes na França deram mais força ao movimento. Na última semana, circulou um vídeo mostrando policiais no interior do país colocando alunos ajoelhados, de costas para a parede, sendo revistados por policiais.

A cena causou revolta e inspirou novas manifestações no país. De Paris às ilhas francesas no Caribe, começaram a surgir imagens de manifestantes de coletes amarelos ajoelhados em vias públicas.

“Os franceses aguentaram por muito tempo e agora explodiram”, disse Simon.

Erica Feferber/AFP Erica Feferber/AFP
Geofrroy Van der Hasselt/AFP

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Cenas de Vandalismo

Carros queimados, vitrines de lojas e agências bancárias destruídas, monumentos públicos vandalizados: as manifestações francesas ultrapassaram as brasileiras em termos de força das imagens de violência.

De certa maneira, aliás, pode-se dizer que a França é berço das imagens de destruição de "símbolos do capitalismo" durante as manifestações de maio de 1968.

A prática voltou com força nos protestos de agora, gerando cenas semelhantes às vistas no Brasil após a atuação de grupos de Black Blocks.

“Tenho 38 anos e é a primeira vez que vejo tanta raiva por parte dos franceses”, diz Chirio, historiadora.

Para ela, as manifestações francesas são caracterizadas por um desejo de “insubmissão” e de “desobediência” maiores do que no Brasil.

“Vejo uma vontade de chamar a atenção pela violência mais generalizado no movimento francês”, diz Chrio.

Segundo o jornal Le fígaro, mais de 500 pessoas se feriram desde o início das manifestações na França e quatro foram mortas. E apesar de a maioria dos franceses apoiar os manifestantes, é majoritária também (85%) a rejeição à violência.

8 - Demora na resposta do governo

Carros queimados, vitrines de lojas e agências bancárias destruídas, monumentos públicos vandalizados: as manifestações francesas ultrapassaram as brasileiras em termos de força das imagens de violência.

Dilma em 2013, Temer em maio de 2018 e Macron agora parecem seguir o mesmo padrão de comportamento: minimizam a importância das manifestações -- o que surte efeito contrário e as potencializa.

Na foto acima, manifestante leva colete amarelo em que se lê "Macron, dégage". Algo como "Macron, caia fora".

“No palácio do Eliseu (sede do governo francês), estão todos apavorados. Mas Macron não é dado ao diálogo. Ele vem dessa cultura do setor privado que acha que tudo sabe e que rejeita o povão”, diz Chiriou.

Depois de três semanas de manifestações cada vez maiores, na última semana, o governo francês resolveu fazer as primeiras concessões. Primeiro, adiou para o ano que vem o imposto sobre os combustíveis. Como viu que os ânimos não se arrefeciam, anunciou que o imposto não seria mais aplicado.

Mas a reação parece ter vindo tarde demais. Os manifestantes querem, agora, a cabeça de Macron.

“É o fim das ilusões. Macron não representa mais ninguém”, disse Renou.

Somente depois de mais de um mês de protestos, o presidente francês baixou a guarda e sinalizou intenção de diálogo com os manifestantes. Até agora, a linha de frente vinha sendo assumida pelo primeiro-ministro, Edouard Philippe.

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Até quando? Ninguém sabe

Lista de reivindicações difusa e incoerente, falta de liderança e pouca disposição para o diálogo fizeram a greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, durar mais de 10 dias. Na França, a mesma combinação faz o movimento se arrastar há um mês.

“Os anúncios do governo até agora não atendem o que as pessoas querem”, diz Simon, moderador de um grupo com mais de 130 mil usuários no Facebook.

“O problema é identificar o que exatamente as pessoas querem”, diz Chirio.

Mas Macron não parece, até o momento, disposto a entender as reivindicações, nem falar com os manifestante. Pelo Twitter, após o último sábado de manifestações, publicou mensagem direcionada à polícia.

"Às forças da ordem hoje mobilizadas, obrigado pela coragem e pelo profissionalismo excepcional que vocês demonstraram", disse.

Enquanto isso, os grupos de 'Gilets jaunes' no Facebook só crescem. No início da semana, um grupo do qual a reportagem faz parte tinha 105 mil usuários. No último domingo, chegou a 162 mil.

10 - Difícil saber quem sai ganhando

Eric Feferberg/AFP
Eric Vidal / Reuters

O senso comum entre os analistas políticos internacionais é que as manifestações de 2013 e a greve dos caminhoneiros no Brasil enfraqueceram tanto o PT, no poder, quanto o PSDB, na oposição, e favoreceram Jair Bolsonaro -- um candidato que se apresentou como alternativa a tudo que estava em vigor.

Na França, a aritmética política resultante das manifestações em curso ainda não é clara, e o país já é governado por um presidente "outsider".

"Ainda é cedo para avaliar", diz o sociólogo da Sorbonne, Jean-François Amadieu.

A historiadora Maud Chiriou concorda.

"Por enquanto, ninguém ganha com esse movimento de rejeição à classe política e aos corpos intermediários (sindicados movimentos sociais). Não há melhora para ninguém, não há beneficiários óbvios. Talvez venha a emergir alguém dos extremos, seja ele de direita ou de esquerda", diz a professora Maud Chirio.

Enquanto isso, na Bélgica, Steve Bannon, estrategista de Trump e próximo a Bolsonaro, voltou a se encontrar com Marine Le  Pen, a candidata da ultradireita francesa. Eles participaram de um encontro de políticos de direita e criticaram os pactos pró-imigração firmados pela Europa. 

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