Reclusão forçada

Jovem que afirma ter coronavírus no RJ é atacada na web, se isola e passa o tempo fazendo faxina

Breno Castro Alves Colaboração para o UOL, em São Paulo Getty Images/iStockphoto

A rotina de uma das primeiras brasileiras que afirma ter sido infectada pelo coronavírus é monótona: desde o última dia 1º, quando teve a suspeita da infecção, G. deixou de ir ao trabalho e agora, basicamente, assiste à TV e limpa a casa.

Ela tem 28 anos, mora no interior do Rio de Janeiro e relata sintomas leves. Seu maior problema, afirma, são as agressões nas redes sociais. Ela também menciona a perda de olfato, que persiste há semanas.

Por conta dos boatos, alguns sugerindo que ela trouxe a doença de propósito após férias na Europa, G. prefere não ter o nome revelado. A reportagem conversou com a jovem por videoconferência e confirmou sua identidade por meio de documentos.

A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro confirma que há um caso na cidade em que G. mora, mas não informa o nome da paciente, que está em casa em quarentena com o marido.

Ela afirma que alguns parentes fazem as compras e deixam em sua sala, sem qualquer contato físico com os dois.

"Eu não estou reclamando de ninguém, sabe? Só quero mostrar para as pessoas que é óbvio que eu não fiquei doente de propósito e que, assim que desconfiei, fui para casa".

Getty Images/iStockphoto

G. estava em Lisboa quando sentiu o primeiro sintoma: dor na face, semelhante à sua antiga sinusite. Atribuiu ao ar gelado daquele dia 18 de fevereiro, inverno na Europa. Considerou descansar, mas estava de férias, então tomou anti-inflamatório e seguiu viagem junto a F,, seu marido. Teve dores por mais dois dias e depois voltou a se sentir bem.

Ela e o marido passaram 13 dias viajando e visitaram também Espanha, Itália e Alemanha. G. não se lembra de ninguém doente ou espirrando ao seu redor. F. aponta que eles foram ao jogo do Milan contra a Juventus, que recebeu 78 mil torcedores.

No aeroporto de Milão, o casal encontrou equipes de saúde que mediram sua temperatura. Eles puderam seguir viagem sem problemas.

National Institutes of Health / AFP

Isolamento

G. e F. voltaram ao Brasil em 23 de fevereiro. G. sentiu cansaço, mas imaginou que era desgaste da viagem. Os três dias seguintes foram carnaval, sem expediente em seu trabalho, e o casal ficou em casa descansando. Na quinta, G. voltou ao trabalho e sentiu dor de cabeça. Na sexta, reclamou das costas.

"Não exatamente uma dor. Era um incômodo no respirar, um mal-estar", define. Um outro sintoma peculiar também se fez presente: G parou de sentir cheiros. Desde que voltou para o Brasil até hoje, permanece sem olfato.

A dor nas costas persistiu e ela foi para a Santa Casa de sua cidade, que, descreve, "estava muito preparada, todo mundo de máscara, fazendo entrevista focada no coronavírus".

G. disse aos médicos que havia passado pela Itália e foi imediatamente isolada. Passou por uma bateria de exames, inclusive raios-x da face, que acharam resquício de sinusite. Os médicos receitaram repouso, anti-inflamatório e analgésico. Foi para casa e lá ficou.

O resultado positivo saiu em 5 de março, véspera de seu aniversário. A notícia se espalhou e G. teve o aniversário mais difícil de sua vida.

Eu não estava preocupada porque não dei um espirro, sem tosse, muco, nada. Meu marido então, completamente assintomático

G., 28, Jovem que afirma ter tido resultado positivo do teste de coronavírus

Adriano Machado/Reuters

Espiral de boatos

"Sexta-feira foi o auge da boataria. Um monte de áudio de Whatsapp, muitas mentiras deliberadas. Tinha gente chorando, falando que eu tinha morrido. Meu tio ligou desesperado, achando que eu estava mentindo quando dizia que estava bem. E eu lá, sem espirro, sem tosse, nada".

Além dos genuinamente preocupados com sua saúde, ainda que mal informados, houve muitas mensagens agressivas.

Chegaram a afirmar que G. havia infectado a cidade propositalmente e que deveria ser linchada.

"O mais perigoso dessa doença foi a boataria. Como eu poderia saber que estava doente, se minha maior temperatura foi 36,8ºC? Tive zero febre, zero sintomas de gripe".

Família não se infectou

Nos últimos dias, começaram a sair os resultados dos exames daqueles que tiveram contato com G. e F. Dezenas de pessoas foram convocados a comparecer ao hospital com hora marcada e vestindo máscara. Foram testados e enviados para casa em isolamento domiciliar, até o resultado do exame.

Ela não esconde o alívio ao informar que todos os resultados voltaram negativos, inclusive o marido. "Eu encontrei minha mãe, meu pai, minha sogra, uma colega de trabalho grávida. Você acha que eu faria isso se desconfiasse que estava com o vírus?"

Mesmo com os ataques e agressões que surgiram nas redes, G faz questão de pontuar todo o apoio que recebeu. "Foram muitas mensagens. Me senti amada, mesmo distante, e me ajudou".

Ela elogia também a Secretaria de Saúde da cidade, que monitorou seu caso permanentemente.

Agora, quer apenas se curar e voltar ao trabalho.

"Me sinto bem. Meu emocional, apesar de ataques, também teve muito apoio. Quero voltar à vida normal, voltar a trabalhar, a fazer meu exercício. Hoje estava aqui faxinando a casa, mudando sofá de lugar. Olha meu pulmão que ótimo", e respira fundo, demonstrando a respiração desobstruída.

O que se sabe sobre o coronavírus

YONHAP / AFP

Medo de agressões

A entrevista foi realizada por telefone e vídeo na tarde de ontem (11). Desde o diagnóstico, G foi retratada em diversas postagens de redes sociais, muitas vezes com mensagens agressivas.

Em respeito aos seus pedidos, o UOL não publicará qualquer uma dessas imagens.

Diversos outros casos contatados pela reportagem apresentaram preocupações semelhantes com a segurança, relatando receio de agressão atribuídos à desinformação e à histeria ao redor da doença.

Sintomas leves são comuns, diz infectologista

Evaldo Stanislau, infectologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e diretor da Sociedade Paulista de Infectologia, afirma que o relato de G. representa o que é esperado na maioria dos casos: doença leve, com poucos sintomas e recuperação em domicílio.

"O fato de ela ser quase assintomática ajuda a educar positivamente, mostrando que para a maioria das pessoas o coronavírus deve ser uma infecção viral que acomete o trato respiratório e tem manifestações leves. Entretanto, precisamos enfatizar que pessoas com mais de 60 anos, portadores de doença crônica, transplantados e outros imunodeprimidos devem redobrar a cautela e seguir as medidas de prevenção, publicadas à exaustão".

Evaldo também diz que as agressões a que G. foi submetida devem representar, pelo menos no início, um comportamento "esperado e deplorável".

"O julgamento moral de infectados é uma marca histórica da humanidade e reflete a insegurança e o medo causados pelo desconhecido. O próximo passo é a desumanização. O HIV, quando descoberto, foi rotulado como peste gay - e muitos homofóbicos até gostaram disso, viram como castigo divino - o que é um absurdo", afirma.

O infectologista enfatiza que os infectados são vítimas. "Amanhã ou depois, poderá ser você ou seus entes queridos, que também deverão ser tratados com humanidade e respeito", conclui.

Recomendações para evitar contágio com coronavírus

  • Evitar tocar boca, olhos e nariz

  • Evitar aglomerações e viagens

  • Evitar beijos e apertos de mão

  • Não compartilhar objetos íntimos, como batom e talheres

  • Ao tossir ou espirrar, proteger-se com a face interna do cotovelo

  • Higienizar constantemente as mãos

  • Evitar contato com pessoas sintomáticas

  • Em caso de sintomas, ficar em casa e evitar ir ao médico

  • Em caso de sintomas, e apenas assim, utilizar máscara

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