Entre a enxada e a caneta

Desafio de jovem em assentamento rural em Alagoas é estudar para o Enem com constantes quedas de energia

Carlos Madeiro (texto) e Gabriel Moreira (imagens) Colaboração para o UOL, em Murici (AL)

Todos os dias, às 6h, Pedro Victor Ferreira da Silva, 20, caminha por 40 minutos até o pequeno lote da família na zona rural de Murici (na zona da mata alagoana, a 59 km de Maceió). Lá, o jovem ara a terra e planta inhame, macaxeira, batata, feijão, entre outros legumes.

Às 10h, de volta à casa, começa uma segunda rotina, com os estudos para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Vai até as 12h30, quando para para almoçar.

São muitos os desafios na preparação para seu segundo Enem. No assentamento Dom Helder Câmara (a 10 km da cidade), onde Pedro mora, não há sinal de telefone nem serviço de internet popular.

Somente em março a família conseguiu assinar um pacote de dados, mas via satélite, o que custa R$ 160 mensais (fora os R$ 200 pela instalação da antena de captação do sinal). A velocidade, porém, lembra uma internet discada.

A rede, portanto, não resolve os problemas. "Até consigo ver vídeos, mas para baixar é demorado demais. E perco muito tempo esperando carregar porque a internet é muito lenta."

A região ainda tem constantes quedas de energia. "Aqui falta energia de três a quatro vezes no mês. Tem vez que passa a semana toda sem energia", diz o estudante.

As falhas queimaram um tablet e um notebook, que até hoje estão sem funcionar. Só restou o celular para Pedro estudar.

Nem só para isso serve o aparelho. Ele confessa que vai às tardes até uma área próxima de sua casa, onde a internet funciona melhor, para jogar Free Fire com amigos.

No ano passado, quando cursava o terceiro ano do ensino médio na escola estadual Professor Loureiro, a pandemia o afastou da sala de aula desde março.

Sem acesso a telefonia ou internet, ele concluiu o último ano estudando apenas por apostilas que a diretora de uma escola próxima trazia todos os meses.

Ainda assim, fez o Enem 2020, que aconteceu em janeiro. Diz que acha que fez uma boa prova, não fosse a redação. O tema foi "O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira".

Com a redação zerada, ele realmente não passaria em nenhuma universidade, porque a nota é um dos pré-requisitos.

Ele atribui o branco a não ter tido acesso aos professores no final de seu ciclo de aprendizado. Neste edição, que acontece em 21 e 28 de novembro, a redação deve ser seu maior desafio novamente.

O jovem vai prestar o exame em uma escola de União dos Palmares (a 24 km de Murici, que não tem local de prova).

Mesmo sem o preparo ideal, diz que sonha em conseguir uma vaga na faculdade.

"No momento, como não me preparei bem, não penso muito em que posso fazer [graduação]. Mas, se puder escolher, quero ser professor de biologia. É o assunto mais interessante."

Mesmo sem a pandemia, Pedro batalhava para estudar. Precisava ir à estrada central do assentamento e esperar o ônibus que o levava à cidade. O trajeto, de 10 km, era feito em uma estrada de barro. "Quando chove, piora muito", afirma.

Na pequena casa onde mora, vivem os avós e o tio José Ronaldo da Silva Santos, 29, estudante de letras da Ufal (Universidade Federal de Alagoas). É o tio quem o ajuda algumas vezes com os estudos

"Quando precisamos de internet mais rápida, temos de ir a Murici, onde vou à casa da minha irmã. Eu mesmo, para aulas [remotas] do curso na Ufal, assisto lá --e algumas vezes levo Pedro Victor para estudar também", conta ele, que usa o carro emprestado para ajudar nos deslocamentos.

A avó Nailda Maria da Silva, 73, diz que a instalação da internet foi a realização de um sonho, mas pesa no orçamento familiar.

"Um valor desses é caro, meu filho. A nossa aposentadoria, quando a gente paga tudo, só sobra R$ 400, R$ 500 para o resto todo. E está tudo muito caro."

Ela e o marido, Pedro Leopoldino dos Santos, 79, são aposentados rurais e têm um terreno de 9,5 hectares em Murici, conquistado pela reforma agrária com a CPT (Comissão Pastoral da Terra).

Passaram a vida cortando cana-de-açúcar ou limpando mato na extinta usina Alegria, em União dos Palmares.

"Pedro Victor é um bom menino, me ajuda demais na roça. Ele não me responde, eu é que às vezes gosto de arengar com ele para que ele estude -- coisa que ele não é bem chegado", diz a avó.

"Mas a gente aperta de um lado e do outro, e ele vai chegar lá. Vejo sempre toda dificuldade dele para estudar aqui. Mas, graças a Deus, já terminou o ensino médio."

"A gente, quando trabalha no campo, não ganha na vida, não. É um trabalho pesado, deixa a pessoa 'morta'. Veja como estou hoje: tomando dois remédios para o coração, colesterol e pressão alta. Digo a ele sempre: 'A enxada não dá nada; só a caneta dá'."

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