Contrariando as estatísticas

Jovem se muda para casa da avó para ter internet, mas usa equipamentos doados enquanto vê regalias dos colegas

Ana Paula Bimbati (texto) e Keiny Andrade (imagens) Do UOL e colaboração para o UOL, em São Paulo

A casa no meio do morro, na divisa de Caieiras, na Grande São Paulo, com a zona norte da capital, não foi arquitetada para uma estudante conseguir estudar.

O espaço pequeno e dividido com outros cinco irmãos torna a tentativa de focar na aula uma missão quase impossível. Para chegar aonde ela mora, é preciso subir ao menos quatro escadões. A internet não vem junto.

Com tantos desafios, a solução paliativa encontrada pela estudante Raissa Silva Sabino, 18, após três meses de pandemia, foi se mudar para a casa da avó Leonilda Fortunato Sabino, 67, em Caieiras.

Lá, ela tem um quarto e uma mesa para estudar. A internet ainda oscila e a voz do professor trava, mas é sua "melhor opção".

Ela estuda para alcançar uma boa nota do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), nos próximos dias 21 e 28 de novembro, e, assim, conquistar uma vaga no curso de engenharia da computação.

"Mostra o sucesso do morro", brincou um morador enquanto Raissa tirava fotos para esta reportagem.

Em outra realidade, estão seus colegas na Etec Professor Basilides de Godoy, escola técnica na Lapa, zona oeste da capital paulista.

Enquanto Raissa equilibra sua rotina de estudos e trabalho, com equipamentos e livros doados, ela vê as pessoas de sua turma com recursos avançados.

"Esses dias estava com dificuldade em uma atividade e mandei uma foto do meu caderno para o pessoal da sala. Eles me responderam com fotos explicando e dava para ver que eles tinham iPad e até mesa digitalizadora, com aquelas canetas, sabe?", conta Raissa. "E eu só tentando fazer a internet não cair."

Para entrar na Etec, é preciso passar no vestibulinho. Muitos dos colegas de Raissa, segundo ela, antes de se matricularem lá estudavam em colégios particulares. Ela era aluna da escola estadual Professor Francisco Gonçalves Vieira, na zona norte.

A estudante já havia enfrentado alguns obstáculos. Ela repetiu o 1º ano do ensino médio. Na época, trabalhava como costureira para ajudar a pagar as contas em casa.

Depois desse episódio, decidiu que iria "contrariar as estatísticas", parafraseando "Capítulo 4, Versículo 3", dos Racionais MC's, e conseguiu passar.

Antes da pandemia, a jovem acordava às 4h para sair do extremo da zona norte e chegar à Etec. Parecia que ia voltar para essa rotina, mas, depois de quase dois anos longe da escola, Raissa teve aulas presenciais por duas semanas apenas. Há menos de dez dias do exame, uma aluna foi diagnosticada com covid, e as atividades na Etec foram suspensas novamente.

Agora, quer mudar outra estatística e aumentar o número de jovens negros e pobres nas universidades.

Raissa tem uma rotina intensa. Pela manhã, tenta assistir às aulas online da Etec. Assim que o professor encerra o vídeo, ela corre para o trabalho de auxiliar administrativo, em uma ONG perto de sua casa.

Por volta das 18h, divide sua atenção entre dois cursinhos populares, o Educafro e o MedEnsina, organizado por alunos da USP (Universidade de São Paulo).

Assim que se mudou para casa da avó, quis trabalhar para ajudar com as despesas. Com o técnico em auxiliar administrativo, que fez na Etec também, ela conseguiu o emprego na ONG.

"Com meu salário, pago as contas e principalmente a internet, que é usada por mim nos estudos", conta.

O celular e o notebook que ela usa são emprestados e doados por organizações como a Educafro e por uma assistente social.

"Minha maior dificuldade é matemática, essa área de exatas, que fica difícil entender a distância. Então tenho focado em entender mais esses conteúdos", diz Raissa.

Uma pesquisa feita pelo governo do estado de São Paulo apontou que o desempenho de um aluno do 3º ano do ensino médio em matemática, hoje, está abaixo dos resultados dos últimos 15 anos.

O estudo foi feito no início de 2021 com estudantes da rede pública e mostra o impacto da pandemia na aprendizagem de alunos das escolas estaduais.

Como as aulas dos cursinhos também são online, ela vê a grade horária de ambos e se divide para acompanhar os conteúdos em que tem maior dificuldade.

Ao lado de sua cama, fica uma pilha de livros de cursinhos particulares --todos também doados por organizações. Eles são usados durante sua rotina de estudo.

Para ela, a rotina chega a ser exaustiva, mas ela se esforça pensando em 2021 como sua grande e única chance de acessar o ensino superior.

"Todo dia penso em desistir, mas agora meu trabalho é de meio período, então tenho tempo para estudar. No próximo ano não vai ser assim, por isso preciso conseguir uma vaga agora", afirma.

Daiana da Silva Bispo, 36, cozinheira e mãe da Raissa, sente falta da filha no dia a dia, mas diz entender o motivo do afastamento.

"Não tem condições de ela conseguir estudar aqui", diz Daiana, apontando para os quatro cômodos da casa, que são pequenos e bem próximos uns dos outros.

"Meus irmãos são pequenos, não tenho nem visto eles crescerem. Mas agora fica difícil estudar lá, porque na sexta à noite sempre tem música alta, o que atrapalha a concentração", conta Raissa.

Hoje, Daiana recebe R$ 700 por mês, mas metade do seu salário é para pagar o aluguel. "O que sobra é para pagar as contas e alimentação dos meus filhos pequenos, que moram aqui comigo", explica a mãe.

Sem terminar o ensino médio, ela teme que a filha enfrente as mesmas dificuldades ao longo da vida. Mas Raissa já entendeu seu medo e agora incentiva também a mãe a voltar para a escola.

"Quando falo que sou pobre, as pessoas da minha escola não imaginam essa realidade. Mas quero acreditar que vou atingir meus objetivos", afirma a estudante.

Desigualdades na educação

Conheça os desafios enfrentados por 5 estudantes da escola pública na preparação para o Enem, principal porta de acesso ao ensino superior

  • Rio de Janeiro: Madrugada de estudos

    Vivendo com Bolsa Famíia, mãe solo deixa de dormir para se preparar e tem negada isenção no Enem

    Imagem: Lucas Landau/UOL
    Leia mais
  • Manaus: Aprender e resistir

    Após perder o Enem com covid e colapso em Manaus, jovem indígena estuda com otimismo e orgulho das origens

    Imagem: Bruno Kelly/UOL
    Leia mais
  • Alagoas: Entre a enxada e a caneta

    Após passar a manhã cultivando a terra, jovem em assentamento rural tenta estudar para o Enem sem internet eficiente e com quedas de energia

    Imagem: Gabriel Moreira/UOL
    Leia mais
  • Santa Catarina: O tempo e a equilibrista

    Com ajuda de desconhecidos e livros doados, aluna em SC se reveza entre horas de trabalho e tempo para o Enem: 'Nem estudei direito'

    Imagem: Anderson Coelho/UOL
    Leia mais
  • Enem mais desigual

    Principal acesso às universidades faz neste mês sua edição mais excludente e expõe diferenças educacionais

    Imagem: Lucas Landau/UOL
    Leia mais
Topo