Relações perigosas

Personagem da semana: Vínculos da babá de Henry com Jairinho expõem 'conflitos de interesse'

Herculano Barreto Filho e Daniele Dutra Do UOL e colaboração para o UOL, em São Paulo e no Rio Arte/UOL

A postura adotada pela babá de Henry Borel ao mudar novamente sua versão no primeiro dia de audiências sobre o assassinato do menino a colocou mais uma vez em evidência no caso.

Cabo eleitoral do ex-vereador Dr. Jairinho (sem partido) nas eleições municipais de 2016 e 2020 no Rio, Thayná de Oliveira Ferreira mora com a família em Bangu, bairro da zona oeste carioca onde fica o reduto eleitoral do político.

Mas os laços entre as famílias da babá e do homem que responde por homicídio triplamente qualificado são ainda mais profundos, expondo uma espécie de "conflito de interesse" no papel de Thayná como testemunha de um crime que chocou o país.

O nome da babá aparece na prestação de contas de Jairinho nas eleições de 2016 e 2020 do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), recebendo ao todo R$ 1.575 por "prestação de serviços de panfletista", mesma função exercida pelo pai e noivo dela.

Um tio também chegou a atuar como assessor parlamentar do ex-vereador na Câmara Municipal do Rio —Jairinho teve o mandato cassado no final de junho após ser preso em abril juntamente com a mãe da criança, Monique de Medeiros, também acusada do crime.

A família de Thayná mora na zona oeste, reduto político de Jairinho e do seu pai, o Coronel Jairo, deputado estadual citado na CPI das Milícias, em 2008, por suposta ligação com o grupo criminoso Liga da Justiça.

Cerca de dois meses após distribuir "santinhos" e fazer o tradicional "corpo a corpo" com os eleitores na região, Thayná foi parar na casa de Jairinho por indicação da própria mãe, que ainda hoje é responsável pelos cuidados de um sobrinho do político.

"Ela falou que conhece a família há muitos anos e que trabalhou até nas campanhas do Jairinho. Mas não acredito que ela tenha sido coagida ou que isso tenha influenciado [na mudança de versão]. Ela disse só que começou a perceber na terapia que vinha sendo manipulada pela mãe do Henry", afirmou Priscila Guilherme Sena, advogada de Thayná.

Entre janeiro e março, a babá conviveu com Jairinho, Monique e Henry no apartamento do ex-vereador em um condomínio da Barra da Tijuca, onde a criança de 4 anos morreu.

Após a morte de Henry, a mãe de Thayná chegou a ficar afastada do serviço, mas foi chamada novamente para a casa da família.

"Eles [família de Jairinho] até chegaram a mandar a mãe de Thayná embora. Mas ela ficou afastada só por uma semana porque o menino é muito ligado a ela e começou a desenvolver um quadro de ansiedade. Aí, chamaram ela de volta", contou a defensora de Thayná.

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Reprodução/TV Globo

'Quero ser esquecida'

Thayná mora com a família em um terreno simples de Bangu, zona oeste do Rio de Janeiro e reduto eleitoral de Jairinho. Ela iria se mudar com o noivo para um imóvel em Jacarepaguá, bairro na mesma região da capital fluminense.

A babá, que chegou até a ganhar uma cama de casal de Monique e Jairinho no valor de R$ 1.300, já tinha feito chá de panela planejando a mudança.

Mas a vida do casal sofreu uma reviravolta após a tragédia. Desempregada desde a morte de Henry, Thayná estuda psicologia em faculdade custeada com a ajuda dos pais e tem tido atendimento psicológico regular devido ao abalo emocional.

Após a primeira mudança de versão, quando a polícia descobriu mensagens de celular em que ela alertava Monique sobre agressões de Jairinho a Henry, a babá enviou mensagem ao UOL dizendo estar triste e revelando cuidados com a saúde mental.

"Eu só quero estar reclusa cada vez mais e ser esquecida. Estou priorizando a minha saúde mental e minha paz interior. Estou muito triste com tudo isso. Eu só rezo todos os dias para que tudo seja resolvido o mais rápido possível", disse na época.

Quando confirmou as agressões em depoimento na 16ª DP (Barra), Thayná se desculpou com o delegado. "O senhor me desculpe por ter mentido", repetia a babá no começo do relato ao delegado Henrique Damasceno.

O episódio foi revelado pela advogada Priscila Sena, que acompanhou o depoimento. "A Thayná se emocionou bastante nos momentos em que lembrava do menino. Ficava dizendo que ele era muito carinhoso. Durante o depoimento, ela chorava muito", disse na época a defensora da babá.

"Ela [Thayná] me perguntou: 'Doutora, eu vou ser presa?'. Eu só falei que ela precisava contar a verdade. Aí, ela me contou exatamente o que está no depoimento, relatando os três casos de agressões, quando o menino aparecia machucado [após estar com Jairinho]."

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Relatos de agressões por WhatsApp

Não sei o que é pior, chorando ou mudo. Chorando sei que tá vivo (...). Eu tô apavorada. Família de doido real. A criança vai ficar perturbada (...). O menino estava chorando comigo no quarto querendo a mãe. Aí nisso o doido entrou [dizendo]: 'Henry, não pode chorar. Você é muito mimado'. O menino agarrou no meu pescoço. Começou a chorar muito mesmo, que você vê que não é normal

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Thayná de Oliveira Ferreira, em conversa com o noivo pelo WhatsApp em 2 de fevereiro sobre Jairinho e Henry

Aí ele entrou com o menino para o quarto dele (fiquei sem saída né? Vou fazer o quê?). Agora o menino tá chorando no quarto. Parece que tá tampando a boca do menino. Uma doideira de verdade. Aí veio agora tomar café. Natural, como se nada acontecesse. Eu sei que eu tô trêmula. Uma sensação muito ruim, sabe. De não poder fazer nada. Eu tô com medo dele [Henry] associar que eu sou uma pessoa ruim que deixei ele com o louco

Thayná de Oliveira Ferreira, na sequência da conversa com o noivo, no mesmo dia

'Banda' e chute

Então [Henry] me contou que [Jairinho] deu uma banda e chutou ele, que toda vez faz isso. Que fala que não pode contar. Que fala que não pode contar. Que ele perturba a mãe dele. Que tem que obedecer ele. Se não vai pegar ele. Tá mancando. Mas tô cuidando dele

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Thayná de Oliveira Ferreira, em conversa pelo WhatsApp com Monique Medeiros em 12 de fevereiro

Henry tá reclamando da cabeça. Pediu: 'Tia, não lava, não. Tá doendo'. Ele disse que foi quando caiu que a cabeça ficou doendo

Thayná de Oliveira Ferreira, na sequência da conversa ao relatar o momento em que deu banho no menino

Eu me senti usada pela Monique durante todo esse tempo. Ela vinha, contava, tentava me mostrar o monstro do Jairinho e eu ficava com todas as coisas ruins na cabeça. Era tudo suposição da minha cabeça. Eu nunca vi nenhum ato

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Thayná de Oliveira Ferreira, em relato da babá durante a audiência do caso na Justiça

Reprodução

As três versões de Thayná

Quando prestou depoimento pela primeira vez à Polícia Civil, Thayná mentiu ao relatar uma convivência familiar harmônica. Mas a versão apresentada às autoridades ruiu quando os investigadores revelaram a troca de mensagens entre a babá e a mãe de Henry.

Em uma conversa no WhatsApp, a funcionária narrou em tempo real um episódio ocorrido em fevereiro no apartamento do casal na Barra da Tijuca durante a ausência da mãe.

Segundo a babá, o menino e o padrasto ficaram trancados em um quarto com o som alto da TV. Ao sair do cômodo, a criança mostrou marcas no corpo, contou que levou "uma banda" (rasteira) e chutes. Henry também reclamou de dores no joelho, na cabeça e apareceu mancando em um vídeo.

"Eu chamo e nenhum dois falam nada. Não respondem. Só escuto voz de desenho. Melhor você vir", aconselhou Thayná em mensagens para Monique.

Após as mensagens serem reveladas, a babá voltou atrás, detalhando uma rotina de violência e medo à Polícia Civil. Em novo relato, a babá disse que Jairinho chegou ao apartamento "visivelmente alterado" naquele dia e ainda questionou a criança.

"Henry, o que você falou para a sua mãe? Você gosta de ver a sua mãe triste com o tio? Você mentiu para a sua mãe?", perguntou, segundo relato da babá.

Mas essa versão foi desmentida. Desta vez, na audiência do caso na Justiça. Agora, a babá disse que toda a imagem que tinha sobre Jairinho pode ter sido fruto da imaginação, acusando Monique de manipulação.

Após o episódio, Thayná se surpreendeu com a repercussão negativa com a nova mudança de postura em uma conversa com a sua advogada.

"Ela ainda acha que não falou nada demais [ao mudar de versão mais uma vez]. Ela disse: 'Doutora, não entendo onde errei. Eu confirmei o que foi dito pelo menino. Mas não vi as agressões'", relatou a defensora Priscila Sena.

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Arte/ UOL

O 'dever de dizer a verdade': o que dizem os criminalistas

Criminalistas ouvidos pelo UOL veem possível conflito de interesses pela proximidade da babá com a família de Jairinho, mas advertem para o "dever de dizer a verdade" e sobre os riscos de crime por falso testemunho —Thayná já foi indiciada em inquérito da Polícia Civil por causa da mudança de versões durante a investigação do caso na fase policial.

O criminalista Yuri Sahione disse que, em casos do tipo, a testemunha deve informar à Polícia Civil sobre a relação de proximidade com a família do investigado.

"A testemunha deve informar se houve algum nível de conflito por causa da proximidade familiar ou relação de amizade com os réus, o que parece ser o caso. Aí, a testemunha passa a ser ouvida apenas na condição de informante. Nesse caso, o crédito dado ao depoimento é menor, porque a pessoa talvez não seja tão isenta", explica.

Contudo, ele reforça a necessidade de que a testemunha informe o que presenciou —a babá chegou a falar em relação "harmônica", mas mudou a própria versão após a revelação de conversas entre ela e Monique.

Diferentemente do réu, que pode negar um fato, a testemunha não pode mentir. Ela [a babá] tem obrigação de contar a verdade. E há vários elementos na investigação, como conversas de WhatsApp e depoimentos, que devem ser levados ao Tribunal do Júri para que os jurados decidam se houve ou não crime de falso testemunho
Yuri Sahione, advogado

O criminalista Eduardo Samoel Fonseca também fala sobre a obrigação de falar a verdade, mesmo quando houver proximidade com o réu. "A existência de algum laço de proximidade não tira o dever da testemunha de dizer a verdade", observa.

O criminalista não descarta contudo a possibilidade de a babá estar sofrendo algum tipo de pressão, embora essa tese seja rebatida pela advogada dela.

"Se alguém está sob coação e mente, falta dolo, elemento fundamental para o crime de falso testemunho. Mas, nesse caso, é preciso de elementos para comprovar que efetivamente a testemunha sofreu algum tipo de coação", adverte.

Questionada sobre as mudanças de versão, a advogada de Thayná se limitou a dizer que não pode interferir no relato dela. "Não posso influenciar o depoimento. O que faço apenas é repassar o compromisso que ela tem de dizer a verdade e quais as consequências jurídicas caso isso não ocorra. Mas cada um responde pelos seus atos."

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