Por que confiar na Fiocruz

Pesquisadora dos EUA defende metodologia da instituição, criticada por Osmar Terra por estudo sobre drogas

Noa Krawczyk Depoimento para o UOL, em Baltimore (EUA) Peter Ilicciev / Agência Fiocruz
Arquivo pessoal

"Soube que a Fiocruz e, mais especificamente, o trabalho da equipe de epidemiologia em drogas têm sido alvo de questionamentos no Brasil. Por isso, decidi contar o que vi no tempo em que trabalhei lá."
Noa Krawczyk, do Departamento de Saúde Mental da Universidade Johns Hopkins (EUA)

A polêmica

Ministro Osmar Terra x Fiocruz

O ministro da Cidadania, Osmar Terra, e a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), ligada ao ministério da Saúde, travam uma batalha por conta do 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira (Lnud), concluído em novembro de 2017 e até hoje sob embargo.

O estudo foi encomendado pelo Ministério da Justiça durante o governo Dilma (PT), ao custo de R$ 7 milhões, e entregue à gestão Temer (MDB), que se recusou a recebê-lo. Os questionamentos seguem sob Bolsonaro (PSL).

O governo afirma que a Fiocruz mudou a metodologia e impossibilitou, assim, a comparação com os dois levantamentos anteriores. A fundação diz que seguiu o que pedia o edital.

No meio acadêmico, especula-se outra razão para o descontentamento: o governo estaria pressionando a Fiocruz por conclusões mais alarmistas sobre o panorama de drogas como maconha, cocaína e crack no Brasil.

Declarações recentes do ministro da Cidadania - pasta criada por Bolsonaro e agora responsável por temas relacionados a drogas - reforçam essa tese.

Há duas semanas, em entrevista o jornal O Globo, Terra afirmou que "não confia no estudo da Fiocruz", nem vê "validade científica" nele. Ele diz que a instituição está "mobilizada a favor da liberação das drogas" e por isso não admite uma "epidemia de drogas no país".

A versão preliminar a que a reportagem teve acesso não nega, nem confirma isso.

A polêmica cruzou as fronteiras. Na Universidade Johns Hopkins, nos EUA, referência mundial em saúde pública, a pesquisadora Noa Krawczyk, israelense radicada nos Estados Unidos, saiu em defesa da Fiocruz neste relato para o UOL. Em um estudo sobre opiáceos no Brasil que realizou, ela utilizou dados e metodologia do estudo em questão - e diz que são confiáveis.

Os trechos sobre fundo negro são relatos de Noa. Em fundo branco, como este, são explicações da Redação.

Peter Ilicciev / Agência Fiocruz

Dos EUA para a Fiocruz

"Me apaixonei pelo Brasil durante uma viagem ao Rio em 2011. Além da beleza das paisagens e da gentileza das pessoas, me encantou saber que a saúde é um direito constitucional - apesar das inúmeras dificuldades na concretização desse direito. Venho dos Estados Unidos, um país que não assegura acesso à saúde a todos os cidadãos.

Voltei ao Brasil três anos depois como bolsista da Fulbright, um dos programas de incentivo à pesquisa mais prestigiados do mundo, para estudar saúde pública e dependência de cocaína - assuntos que mobilizam as sociedades norte-americana e brasileira.

E tive a felicidade e a sorte de ser recebida pela equipe de epidemiologia em drogas da Fiocruz, a maior instituição de pesquisa em saúde pública no Brasil e também uma das mais importantes do mundo."

Peter Ilicciev / Agência Fiocruz Peter Ilicciev / Agência Fiocruz
NELSON ALMEIDA / AFP

Levantamento sobre crack

"Na época, o grupo da Fiocruz trabalhava para estimar a prevalência do uso de cocaína e crack entre populações de difícil acesso no Brasil, sob a liderança do epidemiologista Francisco Bastos, internacionalmente reconhecido.

Cientes da preocupação da mídia, do governo e das famílias brasileiras com o uso dessas drogas no país, a equipe de Bastos tinha como objetivo entender, medir e quantificar essa questão. O grupo desenvolveu métodos estatísticos inovadores, movidos pela vontade de recomendar políticas públicas baseadas em evidências científicas.

Hoje, a ponto de concluir meu doutorado em Johns Hopkins, a melhor escola de saúde pública dos Estados Unidos, e de assumir um posto de professora e pesquisadora na Universidade de Nova York, posso assegurar que a Fiocruz, sua metodologia e sua equipe estão em linha com o que há de mais moderno no mundo no campo de epidemiologia e uso de substâncias."

Vi na Fiocruz não só um nível técnico impressionante e uma expertise metodológica surpreendente, mas um compromisso com a integridade da ciência, com a verdade e com o desejo de mudar as vidas dos brasileiros mais vulneráveis."

Sobre o 3º Lnud

Argumentos de cada parte

ALEX DE JESUS/O TEMPO/ESTADÃO CONTEÚDO

Ministro Osmar Terra

Em carta aberta, ele escreveu que a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad) não reconhece o estudo, mas não proíbe a divulgação. Ele diz que critica estudos sobre drogas da Fiocruz desde 2013 - quando um levantamento concluiu que não havia epidemia de crack no país. Para ele, outros estudos e o aumento de pedidos de auxílio doença por dependência química provam o contrário.

Celso Pupo /Fotoarena/Folhapress

Fiocruz

Afirma que obedeceu ao edital ao utilizar o plano amostral da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE - o que permite cruzar informações de drogas com outros dados nacionais, mas dificulta a comparação direta com levantamentos anteriores. A Fiocruz diz que entregou análises comparativas em separado, após as queixas, e que só publicará o estudo com a anuência de quem o encomendou, ou outra decisão acordada pela AGU (Advocacia Geral da União).

Afinal, o que é epidemia?

É a ocorrência, em uma comunidade ou região, de casos de uma doença, comportamento relacionado a saúde ou outros eventos relacionados a saúde claramente em excesso em relação à expectativa normal.

Adaptado da Organização Mundial de Saúde

iStock

Riscos desconhecidos

"Em parceria com a Fiocruz, e usando o 3º Levantamento Nacional sobre Uso de Drogas pela População Brasileira, atualmente sob embargo, realizei um estudo que revelou que a cocaína, alvo de preocupação da mídia, da sociedade e do governo, tem taxa de uso no Brasil similar ao de analgésicos opiáceos, como a codeína - sobre a qual pouco se fala.

É este, afinal, o papel da ciência: abrir nossos olhos para fatos reais, de maneira a permitir investimentos eficientes para resolver os problemas mais urgentes.

Nos Estados Unidos, o abuso de analgésicos opiáceos é um problema de saúde pública que leva milhares de vidas. Como pesquisadora do campo das dependências psíquicas e físicas, morando em um país onde overdoses levaram mais de 70 mil vidas só em 2017, sei como é urgente prevenir os problemas com drogas e garantir que as ações corretas sejam conduzidas para prevenir e tratar."

Por que, para pesquisadores, não há epidemia de crack?

Como não há dados anteriores confiáveis, não é possível fazer comparação e observar uma tendência clara de aumento no consumo - o que caracterizaria uma epidemia. Além disso, a presença da droga na população não chega a 0,5%, segundo prévia do levantamento questionado pelo governo.

Pesquisadores ligados ao Lnud, Até que o levantamento seja aceito, os autores não querem fazer declarações públicas

A importância da ciência

"Apesar, ou até por causa, do desespero das famílias e da pressão da mídia, precisamos continuar investindo e acreditando na ciência como base de políticas públicas que não apenas pareçam boas, mas que fato sejam as mais eficientes. É o melhor caminho para salvar mais vidas e diminuir sofrimento - em menos tempo e com o melhor uso de nossos recursos limitados.

Se não duvidamos ao convocar os melhores cientistas para procurar tratamentos para doenças como câncer, devemos fazer o mesmo, apostando em medicina e ciência, para enfrentar desafios como dependência de drogas e saúde mental.

Há 119 anos, a Fiocruz desenvolve pesquisas que beneficiam o Brasil e o mundo. Não devemos permitir que isso acabe, nem desistir de escolher a ciência, seus métodos e seus dados, como a melhor arma para lidar com a saúde."

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