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'É uma ofensa à ciência', diz médico especialista em drogas intimado a depor por 'apologia ao crime'

Rafael Barifouse - Da BBC Brasil em São Paulo

23/02/2018 16h56

Em setembro do ano passado, o médico Elisaldo Carlini foi surpreendido por uma correspondência: ele era alvo de um inquérito que investigava se havia feito apologia ao crime - sem especificar qual - e que estava sendo intimado a depor para prestar esclarecimentos.

Aos 87 anos, o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), especializado em psicofarmacologia pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos, é um dos principais pesquisadores de entorpecentes do país. Ele dedica-se há mais de seis décadas a estudar o efeito das drogas e, em especial, o uso medicinal da maconha, pelo qual advoga abertamente.

"Quando recebi a carta, quase caí para trás. Não era possível que estava sendo acusado disso", diz Carlini à BBC Brasil. "Em todos esses anos de trabalho, nunca havia me acontecido algo assim."

A razão da intimação era seu trabalho como organizador da quinta edição de um simpósio sobre maconha e realizado em maio do ano passado, com a participação de mais de 30 especialistas de diferentes áreas, como política, história, direito e cultura, para discutir questões em torno da droga. O evento era patrocinado pela Unifesp e pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogras Psicotrópicas (Cebrid).

Em um dos painéis, sobre religião, Carlini gostaria de ter contado com a presença de Ras Geraldinho, como é conhecido Geraldo Antonio Baptista, criador da primeira igreja rastafári do país, que usa a maconha em rituais de meditação.

Baptista está preso desde 2013, condenado a 14 anos de reclusão por tráfico de drogas, após a apreensão de 37 pés da planta na sede de sua igreja, em uma chácara no interior de São Paulo. Carlini e seus colegas pediram, então, à Justiça que ele fosse autorizado a deixar a prisão temporariamente para participar do simpósio, o que foi negado.

Os cientistas seguiram com a organização do evento sem a participação de Baptista, mas o episódio não terminou ali.

Indignação e revolta

A promotora Rosemary Azevedo Porcelli da Silva, do Ministério Público Estadual de São Paulo (MPE-SP) em Campinas, que analisou o convite dos cientistas a Geraldinho, disse que o pedido lhe gerou "indignação" e que havia nele "fortes indícios de apologia ao crime", como escreveu no documento que encaminhou a um promotor da capital soliticando que fossem tomadas as "providências cabíveis".

O resultado foi a convocação de Carlini para depor no 16º DP, na zona sul de São Paulo - e o que ele fez, na última quarta-feira. Diante da escrivã, ao longo de uma hora, ele confirmou que havia feito o convite a Baptista, explicou as razões disso e o que era o simpósio e falou de sua carreira e do trabalho que desenvolve. Em nenhum momento lhe foi esclarecido qual seria seu crime.

"Sempre fui contra a condenação da maconha como uma droga perigosa. Ela é cada vez mais reconhecida como um bom medicamento e tem efeitos positivos amplamente descritos pela comunidade científica mundial, principalmente em casos de esclerose múltipla e epilepsia. Tenho que falar sobre o que eu acredito. Mas nunca falei uma palavra a favor ou contra o uso recreativo", diz e conclui: "Qual foi meu crime? Posso ir para a cadeia por causa disso".

Organizador do evento desde 1995, é a primeira vez que algo do tipo lhe acontece. "Fui condecorado duas vezes pela Presidência. Minhas pesquisas já foram citadas mais de 12 mil vezes por pesquisadores de todo o mundo. Coordeno um centro de pesquisa na área na Unifesp. Tudo sempre com um aspecto eminentemente científico", diz Carlini.

"Senti uma revolta imensa, porque sempre pude falar dos efeitos positivos da maconha e nunca tive problemas. Isso é uma ofensa para a ciência brasileira."

'Violação da liberdade de investigação científica'

O cientista Renato Filev acompanhou Carlini à delegacia, porque, como secretário-geral do simpósio, também foi intimado a depor. Ele conta que os dois foram bem tratados.

"O clima foi bastante cordial. Eles viam que o professor é alguém bem diferente das figuras que passam rotineiramente por ali, mas pediam desculpas porque tinham o dever de cumprir uma determinação do MPE", diz Filev. "Mas, de qualquer forma, é algo desgastante, que nos deixou apreensivos e com uma grande expectativa."

O advogado Cristiano Maronna, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e representante de Carlini no caso, defende que a abertura do inquérito foi indevida.

"Há outras formas de uma promotora curar ou atenuar sua indignação que não seja usando mal um instrumento sério que só deve ser aplicado quando há indício concreto de crime", afirma Maronna.

"Essa medida é de uma ilegalidade flagrante, uma violação da liberdade de investigação científica, algo garantido pela Constituição. Estamos vivendo um estado policialesco em que há a ideia de tudo é possível para combater o crime, um estado de exceção em que direitos e garantias foram colocados em coma induzido."

Professores e técnicos administrativos em educação do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina - EPM - Unifesp divulgaram uma nota de apoio a Carlini em que se dizem "surpreendidos e indignados com a intimação".

"Nosso professor é reconhecido nacional e internacionalmente por suas pesquisas na área de drogas psicotrópicas e de plantas medicinais. Sua atuação ético-político-acadêmica na universidade sempre esteve pautada em uma ação cidadã, de luta pela democracia, pela liberdade de pensamento e pela justiça e solidariedade social. Não podemos aceitar qualquer forma de constrangimento à liberdade e à autonomia necessária para a realização do trabalho acadêmico-científico."

'Temos que mudar a lei'

Consultada, a assessoria de imprensa do MP de São Paulo afirmou que todas as manifestações da promotora sobre o assunto foram feitas no documento em que pediu "providências" em relação ao caso.

Carlini defende que seus defendores não dirijam críticas à promotora ou aos policiais que atuaram no caso, mas à atual legislação contra drogas. "Quem fez a acusação ou a denúncia não tem culpa. Isso não importa. Sempre há quem deseje seguir estritamente a lei", diz.

"Enquanto vários países vêm avançando neste tema, o Brasil ainda está na Idade Média. Temos que brigar para atualizar a lei, que é injusta e cruel, principalmente com jovens negros e pobres que são presos e mandados para uma sucursal do inferno.", afirmou em referência à atual política de encarceramento brasileira.

O pesquisador diz não estar preocupado com o inquérito. Só o incomoda que isso vai tomar um tempo precioso que ele preferiria estar dedicando à ciência e ao tratamento de um câncer na bexiga, já operado, e a outro tumor na próstata, que ele vem combatendo com medicamentos.

"Meu câncer é bonzinho comigo, não sinto dor. O corpo se cansa fácil, mas a cabeça ainda está boa. Trabalho o dia inteiro e só descanso à noite. Essa é a maneira que tenho de continuar a viver", diz ele. "Quero aproveitar ao máximo os dias que ainda tenho."